Na costa da Ilha de Bioko - ex-Fernando Pó |
Estas foram as últimas palavras que pronunciei para o meu diário gravado, para um pequeno gravador que consegui preservar no interior de um contentor de plástico, igual aos do lixo. assim como a máquina fotográfica , cujos rolos o mar poupou mas que bem podiam ter sido confiscados pelas autoridades policiais da Guiné Equatorial, o que não aconteceu, porventura por descuido, já que, quando me prenderam, além de terem passado tudo a pente fino, até as gravações chegaram a ouvir, de ponta a ponta - E eram seis as cassetes.
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Ilha de Ano Bom |
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Ao fundo a Ilha de Ano Bom |
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A bordo do Hornet |
20 de Outubro - 1975 - Desiludido por não ter sido largado um pouco mais a sul
e a oeste, lá parti, de regresso a São Tomé, pelo desconhecido oceano a fora, a
pensar em refazer nova viagem e com o apoio marítimo de alguém que não me
traísse! - . Após um dia de navegação normal, com vento pela popa e à vela -
mas sempre perseguido por duas canoas para me roubarem os alimentos, dada
a extrema penúria vivida naquela ilha - surge o inevitável temporal: um
violento tornado, ao princípio da noite, vindo do sudeste, uma súbita
rajada de vento seguida por uma enorme vaga, apanha-me desprevenido e ainda com
a nova casca de noz, mal acabada de experimentar, solta-me o leme
(que lhe adaptei - e só por milagre também eu não fui atirado, com a cana do
leme, para o seio daquela escurissima confusão, que só a curtos espaços os
relâmpagos iluminavam) deixa-me a piroga atravessada à vaga e desgovernada,
varrendo-me os apetrechos e forçando-me alijar da maior parte de viveres para
aliviar o lastro e não ir ao fundo
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Âncora Flutuante com um bidõe |
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Enfrentando tempestade |
- Lá foram mandados ao mar três bidões de
água potável e as latas de conserva oferecidas a bordo do
pesqueiro Hornet. Apressei-me a enrolar a vela e a colocar o mastro (suplente) de través
para lhe conferir alguma estabilidade e a lançar o 4º bidão de plástico, meio
de água, preso a uma corda para fazer de âncora flutuante de modo a forçá-la a
estar de proa à vaga.. O colchão insuflável, coloquei-o à proa com a lanterna,
sobre o estrado) para o que desse e viesse, sim, era a única boia que dispunha
e eu não sabia ainda muito bem como a canoa iria resistir e se comportar..
Escusado será dizer que a noite fora pavorosa!...Não há palavras para a
descrever..De manhã improvisei um remo com um barrote e uns bocados que
arranquei da cobertura, junto à popa..Sim, nunca cruzei os braços, nunca me dei
por vencido: foram infinitos os momentos em que a vida esteve sempre
presa por um fio. Mas havia que lutar.
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Na noite do naufrágio |

Uma parte do meu diário dos meus longos e tormentosos 38 dias numa frágil canoa - muitos dos quais à deriva, ao sabor dos ventos, das tempestades e das correntes - , foram publicados neste site, há três anos - Nomeadamente, desde o 17º dia até ao 37º Dia - Hoje resolvi editar o último dia dessa odisseia, aquele em que pude pisar terra firma, numa recôndita enseada da Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), da Guiné Equatorial, E, nas próximas postagens, além de minha incursão pela floresta até ser acolhido numa finca (roça) os interrogatórios a que fui submetido pelo chefe da policia daquela área e conduzido aos calabouços da esquadra, ao drama que se seguiu na tenebrosa Black Beach
No dia anterior pronunciaria estas palavras


Fundeado junto a uma praia
da região de Bococo, a sul da Ilha de Bioko - Guiné Equatorial - 26 de Novembro de 1975 - Era já noite e não pude acostar. Na manhã seguinte,
descobriria, na mesma orla, algures para oeste, um pequeno areal negro onde
pude finalmente desembarcar. As horas magníficas que ali passei durante a manhã, até meio da tarde, naquela
pequena enseada luxuriante - qual aspirante a Robinson Crusoe e depois a caminhada pela
floresta que me levaria a uma finca de cacau, a forma amistosa como ali fui bem
recebido a contrastar com o comportamento desumano das autoridades que, mesmo extremamente debilitado, nesse dia à
noite, me levariam para os calabouços de uma esquadra, sob suspeita de espionagem, tendo, no dia seguinte,
sido conduzido algemado para a mais temível cadeia de África - a tenebrosa Bach Beach - que quer dizer morte.
Quando um prisioneiro chega a esta prisão, sua família começa a preparar o
caixão.-
Na manhã do dia seguinte, procuro então um lugar seguro onde pudesse acostar a canoa, mas não me parecia fácil - A costa era abrupta e montanhosa e eu estava muito fraco, sem forças para remar para muito longe, já que à vela, o vento era insuficiente. Foi então, que me apercebi, ao remar um pouco para o largo, de que havia uma pequena enseada que, dispondo de um pequeno areal, aparentemente me oferecia algumas condições de ali acostar - Entretanto, naquele compasso de observação, vejo ali chegar um homem que começa a escavar a areia, porventura à procura de ovos de tartaruga.
Receando que, ao chegar à zona de rebentação, não tivesse forças para retirar o contentor da canoa e salvaguardá-lo, e, por isso, não querendo correr tal arisco, resolvi usar o apito que trazia num cordel ao peito e apitar para o dito homem a fim de lhe pedir apoio - De facto, ele olhou mas, talvez supondo-me pescador, não quis saber. E pouco depois ia-se embora.
Eis algumas passagens reescritas do relato que verti para os meus cadernos, quando estive preso e que agora reescrevi - "Dei umas assobiadelas, com o apito que tenho num
cordel ao peito, ele levantou-se, olhou, por uns instantes na minha direção, mas
não fez caso, continuou a escavar com o machim na areia. Com certeza, julgou-me
algum pescador. Pouco depois, desaparecia, possivelmente
pelo caminho donde tinha vindo. A partir daí fiquei mais inquieto. Pensei que,
de facto, mesmo perto de terra, a não podia alcançar, Mesmo assim, nem por isso
perdi a serenidade.
Apesar de tudo, estou calmo .Acho que um homem, enquanto estiver sujeito aos
caprichos do mar, nunca se deve precipitar.
Mesmo à beira da costa, tal como agora me encontro, onde os perigos aparentemente
não parecem ser tão visíveis, no entanto não faltam, em forma de escolhos
ocultos, talvez em maior ameaça, que no mar alto
FINALMENTE, DECIDIDO A REMAR EM DIREÇÃO A
TERRA
Recanto da Ilha de S. Tomé, parecidos aos de Fernando Pó |
Decido-me, por fim, a empreender a abordagem.
E vai ser precisamente para a mesma praia donde há bocado vi desaparecer o
tal enigmático homem – A primeira imagem humana, que me foi dado ver, depois de ter sido largado do pesqueiro
Hornet, em Ano Bom. Parece ser o único sítio ao longo da costa, que me parece oferecer
mais confiança. As ondas, lá também branqueiam de espuma ao desfazerem-se na
reduzida borda de areia negra, julgo, no entanto, que deverá ser o mais
propício que por aqui, nesta costa aprumo.
Porém, antes de puxar a âncora para bordo,
vou primeiramente reunir certo material que aí tenho no interior do meu baú –
um caixote de plástico, que era usado para depósito do lixo. Após o que o
amarro, com alguns cordéis e coloco-o à minha frente, onde vou remar. De modo
que, quando a canoa embicar na areia, seja a primeira coisa a salvaguardar. Assim,
na iminência de a canoa se poder voltar, eu possa evitar que o seu conteúdo, onde guardo o gravador e as
cassetes, com o meu diário, a máquina fotográfica e os rolo, possa ficar à
mercê das vagas e se danificar. Uma coisa, porém, devo atirar borda fora, é o
machim, pois não quero que seja tomado por algum salteador mas de um
aventureiro corajoso mas pacífico.
O
mar está ligeiramente encapelado, há alguma rebentação, junto à margem, mas no ponto em que vou
largar ainda não esteja difícil. Corre
uma tépida brisa de oeste, que, pela sua fraca intensidade, nem me afecta nem
me favorece, tanto mais que não navego à vela. O Sol ainda hoje não fez a sua aparição.
A pequena enseada de areia, deverá situar-se a uns 50 a 100 metros. É na sua
direção que já aproei a minha canoa. Remo
com a corrente a bater de alheta e com a margem da costa a estibordo.

Não pronuncio uma palavra mas o meu
coração não para de bater - Pensamentos diversos e contraditórios, perpassam-me
pelo meu cérebro, com múltiplas interrogações às quais não sei responder. Pois desconheço
que terra vou pisar e que ambiente de pessoas poderei encontrar. Já
sou vejo água efervescente por todos os lados e, como pano de fundo, toda a grandeza estonteante do verde profundo
e luxuriante da floresta. A canoa balouça perigosamente, sobre a linha de
rebentação, que a sacode em sucessivos turbilhões.
Mas esta é, porém, uma tarefa hercúlea -
Pois eu mal me posso manter em pé, sou quase um esqueleto ambulante; é com extrema
dificuldade que arrasto o meu baú: mais cambaleando, cambaleando, de que
propriamente andando em passos firmes. Mas lá o vou conseguindo, com inaudito
esforço, pouco a pouco, pisando a areia
escura mas macia e fina de um maravilhoso recanto, de um país que ainda
desconheço, um tanto com o propósito de consumar uma fuga para a vida , um tanto
quase com sentido religioso de salvaguardar
da voragem das vagas o meu relicário aventureiro e poético.
Mas, oh que esquisito e atabalhoado caminhar!
Para um navegante caminheiro!... Enfim, lá vou tomando plena consciência, que o chão que piso é firme e seguro e não
balança, como durante tantos dias e noites balanceou, à superfície de um abismo
azul, que a qualquer instante me podia engolir e do qual me separava apenas a grossura
de um dois dedos. Mesmo assim, ainda muito estonteado pelos incessantes movimentos da duríssima prova de sobrevivência, a que resistira.

.

É então que sinto o meu coração ficar simultaneamente
aliviado e me dou conta que estou finalmente salvo. Sim, já não tenho a menor
dúvida: o momento, tão ansiosamente esperado, havia chegado. Sinto-me bem disposto,
posso tranquilizar-me à vontade. E aspirar, com todos os meus pulmões, este
hálito benfazejo e perfumado da floresta, deste fascinante rincão de natureza plena de frescura, viscosidade e
de mistério. E sorrio, sorrio, doido de
contente, como que animado por um selvagem alegria, deambulando de um lado para
o outro desta frondosa praia, sorrindo e gesticulando a cada instante, sorrindo
sempre, ingénua e inocentemente, tal qual o sorriso de uma criança, quando a
mãe lhe oferece um lindo brinquedo, ao sentir-me presenteado por esta
maravilhosa e abençoada terra, que se me oferece como um verdadeiro paraíso
perdido do resto do mundo, como se por vontade sobrenatural, depois de tantos
tormentos, me fosse oferecido como seu
único possuidor e mandatário.

Já tive oportunidade de me consolar com
água fresca e pura de um murmurante riacho que aqui vem desaguar. Também já acabei
de transportar todas as minhas coisas que havia ficado na canoa para a orla
da floresta. Do interior do plástico,
retirei a máquina fotográfica e já bati algumas chapas à “Yon Gato”. Deverão
ser as últimas recordações que guardarei da minha corajosa piroga.
Confesso que, quando aqui cheguei, o meu
desejo, era esconder-me em qualquer sítio, Não ficar aqui, junto à borda da
praia, por muito tempo. Tive a impressão de que estava a violar qualquer coisa:
um território alheio. Não me sentia muito seguro. Olho para um lado e para
outro, com desconfiança. Tinha a
sensação de pertencer a outra espécie, a
outro planeta. Porém, estranhamente, agora apetece-me aqui ficar eternamente.
Estou encantado com isto. Não me sinto nada preocupado com o meu destino. Até me parece que o meu destino é o de continuar perpetuamente embalado neste maravilhoso
domínio: sinto uma segurança, sem limites.
Que
beleza! Que doce e agradável melancolia me produz! Que seria difícil ter
chegado a um lugar mais calmo e bonito
como este!
27 DE NOV – DUAS DA TARDE
Calculo que sejam as duas da tarde. Não
sei porém, que dia da semana é hoje. Fui largado, na canoa, no dia 20 de Outubro, às 5,30
da manhã, ao nascer do sol, um pouco a norte da Ilha de Ano Bom. Portanto, hoje completam-se 38 dias - Deve ser 27 de Novembro.
Paisagem de S. Tomé, muito idêntica à de Fernando Pó |
Na
verdade, após ter perdido o controlo da canoa, ter ficado sem o leme, que lhe adaptara, os remos principais e a maior parte dos apetrechos e alimentos, devido à fúria de um tornado, embora nunca tivesse desanimado e perdido a esperança, a bem dizer nunca mais quis saber do dia da semana
ou do mês, em que me situava em relação ao calendário: o tempo passou a ter
para mim uma dimensão e um significado diferente. Pouco me importava saber que
fosse domingo ou segunda-feira. Que fosse este ou aquele dia do mês. Não tinha
horário, não tinha qualquer tipo de obrigações a cumprir. Sentia-me desligado
do tempo. A única preocupação era sobreviver. No meu diário só fazia alusão ao
número de dias, que ia sobrevivendo. Foram,
pois, 38 longos dias e 38 longas noites. Uma eternidade! O meu pequeno rádio
avariou-se-me nos últimos dias, devido ao banho de uma onda traiçoeira. Quando
o ligava, às vezes, ia tomando
conhecimento de informações precisas em relação às horas e até do próprio calendário do tempo.
Mas, na verdade, o meu relógio preferido, era o movimento aparente do sol, nos
dias em que estava descoberto
Gostaria de continuar a saborear este lugar encantador, por tempo indeterminado, mas já me apercebi de um certo alarido de sons no interior da floresta, que não me tranquilizam, que também ainda não sei se são de pessoas ou de animais e que vieram quebrar o enlevo em que eme encontrava.. Afinal, esta terra não me pertence, o mais prudente é sair daqui: e até ir ao encontro de onde partiram essa mistura de sons ou vozes.
O pior são as minhas coisas. Eu não tenho
forças para transportar coisa alguma .
O mato é cerrado e a encosta íngreme. Vou primeiramente esconder parte delas aí junto de
algum tufo de vegetação. Quanto avistar alguém, peço-lhe que venha comigo ao local para me ajudar a busca-las.
Entretanto, mais uma vez, olho o mar. O mesmo mar, desde a
rebentação até, ao longe, a perder-se de vista no horizonte, agora a revelar-se-me uma extensa superfície meiga e tranquila, sim
o mesmo mar que tantos perigos me fez correr e que talvez só por milagre não me
arrasou para o fundo das suas águas.

(continua em próxima postagem)