RECORDANDO O POETA E PINTOR - MÁRIO CESARINY - E TAMBÉM UM BOM AMIGO - Jorge Trabulo Marques
Jorge Trabulo Marques - Mário Cesariny
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Tive oportunidade de ser amigo de Mário Cesariny de Vasconcelos, de ter partilhado com ele variadíssimos e inesquecíveis momentos de agradável convívio
"Passados dez anos, sobre a sua morte - "é uma voz que ainda ecoa" e o seu surrealismo uma revolta que ainda não perdeu o sentido” - Entre os amigos mais chegados, a sua presença continua tão forte quanto antes. Como naqueles tempos passados em redor de uma mesa de café a falar de literatura, de política, de arte, de tudo. Sempre certeiro, Cesariny chegava e com uma palavra era capaz de mudar a temperatura de uma sala, sobretudo de pensar fora da caixa porque ele nunca soube o que era estar dentro dela.
Isso — essa ânsia de liberdade noutro Portugal — trouxe-lhe muitos problemas, mas também fez com que se tornasse autor de uma das obras mais importantes do modernismo português. E não só literário, mas também pictórico. Porque a poesia e a pintura andaram sempre de mãos dadas com Cesariny — faziam parte dele. E assim diz quem o conheceu” - .Diz num interessante artigo, Rita Cipriano, publicado no Observador – Do qual extraímos este breve exerto.
CESARINY ADMIRAVA O ESPÍRITO AVENTUREIRO DAS MINHAS ARRISCADAS TRAVESSIAS EM FRÁGEIS PIROGAS E EU ADMIRAVA-O POR SER UM POETA DE CORPO E ESPÍRITO INTEIRO - http://www.odisseiasnosmares.com/2012/10/28-dia-grandes-vagas-alterosas-entravam.html
E também apreciava os meus apontamentos insólitos de reportagens e entrevistas na extinta Rádio Comercial RDP - Um dia haveria de ser ele a substituir o repórter com a empregada de Natália Correia, deslindando segredos, de almoços e jantares, no lendário Botequim e em sua casa e outras revelações - Quem haveria de imaginar tão inesperado acaso!
Mário Cesariny – Diálogo surrealista, 1991 - com a criada cabo-verdiana, da poetiza Natália Correia, em noite das marchas de Santo António, sobre ratos e ratazanas que comem mãozinha de criancinhas e outras surpreendes revelações - Em memórias de um repórter - Ao lado do poeta e pintor, e na mira do apontamento espontâneo de reportagens para Rádio Comercial, quando questionava algumas das pessoas que assistiam ao desfile, eis que surge o diálogo mais inesperado e insólito, que ali poderia esperar.





Nesse aspeto, ele não fazia concessões – Sim, o gosto de surpreender e ser-se surpreendido, um ato poético, artístico e espontâneo, por aquilo que fazia e criava – Cesariny era avesso às entrevistas combinadas mas adepto e apaixonado do diálogo informal e espontâneo. E até sucedia, por vezes, que, ao cruzar-me com ele na rua, ao perguntar-lhe se me podia dizer alguns versos para o meu gravador, me respondia: “desculpa, Jorge; mas neste momento não ando com versos na cabeça, não posso perder tempo contigo:
Conheci-o, casualmente, pela primeira vez, nos finais dos anos 70, numa discoteca Gay, no Príncipe Real, denominada Rokambole, próximo da Faculdade de Ciências– Tinha ali ido fazer uma reportagem para a Rádio Comercial sobre a estreia de um espetáculo de travesti, e, enquanto assistia às hilariantes pantominas dos atores, quis um feliz caso que estivesse sentado no mesmo sofá ao seu lado: às tantas, e, como nestes ambientes informais e descontraídos, quando as pessoas estão sentadas lado a lado, o diálogo geralmente acontece, sou eu que, lhe lanço esta pergunta:

Jorge Trabulo Marques - Mário Cesariny
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Sim, só mais tarde, é, que, ao ver a sua fotografia estampada num jornal, a propósito da sua poesia, pude associar aquela figura franzina e misteriosa à do poeta Mário Cesariny –
Naquela altura, eu conhecia mal os poetas e escritores portugueses de vista, uma vez ter passado 12 anos fora de Portugal. Por isso, quando, um dia, ao fim da tarde, ao cruzar-me com ele à saída do metro nos Restauradores - donde pretendia caminhar até lá cima ao Marquês de Pombal e dali dirigir-me à Rádio Comercial-RDP, na mira de registar alguns apontamentos de reportagem (naquele tempo ainda trabalhava a recibo verde), é que não resisti a cumprimenta-lo, dizendo-lhe: “Já sei que é o poeta Mário Cesariny!- Ele corresponde-me com um amável sorriso, com uma pergunta: então e onde vai?... Vou para a Rádio Comercial!” – Falámos uns breves momentos, dizendo-lhe que um dia gostaria de lhe gravar alguns poemas e de conversar consigo. E, na verdade, muitas haveriam de ser as vezes que nos encontramos; em cafés ou numa das esplanadas dos restauradores, onde também gostava de se sentar, sim, em variadíssimas circunstâncias, tendo mesmo chegado a convidar-me a visitar a sua oficina e a conhecer as suas irmãs, em sua casa.
Em Cesariny, tanto no poeta como no pintor, não havia fingimento ou artificialismos imaginativos mas espontaneidade, uma constante ânsia de revelação, um profundo sentimento de liberdade, de espírito de descoberta de fantasia ou do insólito, de transgressão à vulgaridade, tal como as crianças olham as estrelas, estendendo a mão para lhe tocar, também em Cesariny havia como que o desejo de as poder alcançar, buscando e amando os aspetos mais sedutores, contrastantes e misteriosos da vida, tanto nas criaturas humanas como no ambiente que o rodeava.
Esta é também a minha singela homenagem - Com a publicação de uma foto inédita de um protesto insólito de Mário Cesariny e a recordação de um poema escrito na madrugada seguinte à noite da sua partida - Editado em 2008 noutro site, na qualidade de Luis de Raziel - Ou só Pessoa podia ter os seus heterónimos?
"A
NECROFILIA DO PODER VEM APLAUDIR A PRÓXIMA DESTRUIÇÃO DO MAIOR E
MELHOR APETRECHADO TEATRO QUE SE CONSTRUIU EM PORTUGAL - Protesta Mário
Cesariny
1989 - Nesse dia, decorria o lançamento do livro as Ilhas, Sophia de Mello Breyner Andresen– Mas, Mário Cesariny , quis
aproveitar o concorrido evento para se insurgir contra a "necrofilia do
poder" - Sim, que se preparava para o entregar ao Grupo Amorim e ali
fazer um hotel. - Era de tal modo o aperto, no 1º piso, que, não
podendo fazer o apontamento para a Rádio Comercial (mas sobretudo pelo
facto da autora do “Nome das Coisas”, não dar mostras de grande
disposição para entrevistas), resolvi descer – Nisto, ao chegar ao
fundo das escadas, deparo com o poeta e meu grande amigo Cesariny,
ostentando um cartaz por entre as duas mãos, sem contudo esboçar uma
palavra, o qual ao ver-me, sorri e pergunta-me: “tens aí a
maquineta?”...Sim, porque já não era a primeira vez que, encontrando-me
às desoras da noite pelos Restauradores, ao vir da minha estação de
rádio, me fazia a mesma pergunta para me debitar o poema que lhe vinha
cabeça, acabado de brotar e não se perder - Ainda possuo uma cassete com
um desses maravilhosos versos, como que arrancados do fundo de uma
avenida imersa por uma neblina fria e densa de Inverno. A que eu
prontamente respondo: “Tenho duas! O gravador e a máquina fotográfica”
-

DE FACTO, AQUELE FOI O DIA DO FUNERAL DA MAIS EMBLEMÁTICA SALA DE TEATRO LISBOETA
"A
origem do Cine-Teatro Eden, situado na zona nobre dos Restauradores,
remonta a 1902 quando Albert Beauvelet, um comerciante de automóveis,
alugou as antigas cocheiras do Palácio Foz. (..)
No entanto, o Éden iria decair com o passar do tempo para no último dia
de 1989 transmitir o derradeiro filme: "Os Deuses devem estar loucos
II".
Após
ter sido adquirido pelo Grupo Amorim, este edifício transformou-se no
Hotel Éden, albergando a Virgin Megastore (quem não se lembra da
inauguração com a presença das Spice Girls?) que iria encerrar as portas
pouco tempo depois. Logo a seguir, este espaço seria ocupado pela Loja
do Cidadão, mantendo essa função actualmente. Eden: o "gigante" dos Restauradores… Cassiano Branco
Homenagem
igualmente prestada pelo autor deste site, com fotos pessoais ao poeta e
pintor, auto-retratos nas personagens de Luis de Raziel e de Peregrino da Luz ,
bem assim a reprodução de um poema escrito na madrugada seguinte à morte de
Mario Cesariny
Foto registada em 2005
MESMO QUANDO CHEGADA A HORA,
A MORTE LHES FECHA OS OLHOS.
Cesariny já não faz parte dos vivos.
Morreu ontem ás 5, 30 da manhã, em sua casa!
Ainda o estou a ver…
Quando à mesma hora desceu a avenida da Liberdade
Em madrugada fria de Dezembro.
No silêncio do tempo.
Esquecida na memória dos dias.
Boina na cabeça.
Grossa gabardina de gola alta, cingida ao corpo,
Cascol escuro enrolado ao pescoço.
Defendiam –no da frieza húmida da noite.
Andar calmo e discreto.
Não de alguém que por ali deambulasse, sem destino
Ou por ali derivasse, sem propósito, nem rumo definidos.
Antes de o reconhecer, pelo mesmo passeio que sigo,
Antes de o reconhecer, pelo mesmo passeio que sigo,
Evolui vulto que mal se destaca na névoa, tingida a
oiro turvo pela luz escassa, que a luz pública
mal divisa e distingue.
Estranho e dormente é também o silêncio
que só de vez em quando, é interrompido
por escassos carros que vão passando.
eles mesmos, lembrando, por vezes,
vagarosas silhuetas, difusas,
vindas de largas ruas
de alguma cidade fantasma!
Mas o que vejo é Cesariny,
nítido e inconfundível, na figura,
no andar seguro e tranquilo, no sorriso maroto
de uma inocência nunca perdida,
que a idade parece ter preservado intacta..
Aí está ele! Cabeça levantada. Olhar em frente,
Olhando, horizontalmente, à linha mal iluminada do passeio.
Estilo de ave a quem ninguém impede o voo
de animal selvagem, sem rédeas nem freio.
No passo certo carrega o saber para onde vai,
a indiferença ao caminho, a ausência de embaraço inoportuno,
como quem não trás nada sobre os ombros, o incomode:
nem peso em que vá derreado nem a própria gravidade..
árvores nuas, descarnadas,
imergem no nevoeiro que tudo ofusca.
Ambiente monótono, estranho! sem vivalma
nas horas de abandonar bares e discotecas, nem partidas
para outras aventuras na vertigem do cio.
A espessa atmosfera, transfiguração em espiral contínua,
confunde e disfarça - Mesmo sem o convite,
persistem o belo e o mistério.
Oh Meu Cesariny! Como o tempo corre?
Como a vida foge! - E, todavia,
até parece que foi ontem! - Um repórter de rádio,
pequeno gravador na mão, atrás do imprevisto,
do inesperado, vagueando na solidão da noite húmida e fria,
quase despovoada de vida e de luz, na mira de algo
que valesse uma noite perdida! - E, um poeta, ateado pelo fogo
e a rebeldia dos seus mais cruéis demónios, fidelíssimos amantes
de inspiração altíssima nas horas mais solitárias e incandescentes,
tocado pelos deuses de Olimpo: Hermes, Apolo e Dionísios
- de quem era ao mesmo tempo enteado e dilecto mensageiro,
atraído pelas tentações e volúpias de uns e outros,
qual viajante solitário em busca de “ palavras
e nocturnas palavras gemidos,
palavras que nos sobem ilegíveis À boca
Palavras diamantes palavras nunca escritas
Palavras impossíveis de escrever”..
Oh, sim, o inseparável apaixonado “dos braços dos amantes”
Oh, sim, o inseparável apaixonado “dos braços dos amantes”
que “escrevem muito alto”
Muito além do azul onde oxidados morrem”
O insólito sonâmbulo que vai peregrinando, sem âncora
e sem bússola, de olhos fechados, mas com um grande à-vontade
de quem já trata por tu as avenidas, ruas e os mais discretos becos,
esventrando, por instinto nato, os seus mais recônditos recantos,
fazendo deles o centro do mundo,
e que, tão depressa neles é visto e aparece
aureolado com o brilho de uma estátua em jardim iluminado,
como, imediatamente, se transfigura e funde
ou, mesmo, como súbita névoa que ao pousar
se dilui na atmosfera e no ar desaparece!
Vale a pena, pois, rever os passos de tão singular figura!
Passeando-se, com a subtileza de um mago,
ou com a altiva nobreza de um Príncipe encantado,
por lugares proibidos – devassando
os escombros das “sombras
que têm exaustiva vida própria”.
Indiferente às aparências, ao escárnio severo,
alheio aos múltiplos perigos e maledicências
que, nas horas mortas, no pico das horas
mais furtivas e silenciosas,
poderão reaparecer ou ressurgir
quando menos se espera: no dobrar de cada esquina
ou num passo mais em falso ou descuidado! Desafiando
convenções sociais, a censura alheia,
não se importando “de ser visto
na companhia de gente
altamente suspeita!”
Meu Caro Cesariny:
Como sabe, na vida há um tempo para tudo:
Há-o para o amor, a sensualidade, a poesia - para tudo
há o tempo que o homem quiser fazer enquanto for vivo.
E, também, após a morte! – há um tempo para o repouso absoluto!
- Este agora é o seu tempo! O do indomável guerreiro
ter também o justo descanso! – O do luminoso poeta ,
ao descer, lentamente, à Terra, que o criou,
subir, em espírito e, talvez também, em corpo inteiro,
E, quanto a mim, amigo:
o meu tempo, pelo menos, por agora,
a estas tardias horas da madrugada,
em que a memória de novo me faz recuar
àquela fria noite de Dezembro,
é a de um longo momento de sentida emoção:
- tão só para recordar o belo poema,
os lindos versos, ditos palavra a palavra,
que tive o privilégio de gravar,
tal qual acabavam de ser criados,
por um inesperado poeta que, ali,
imerso em nevoeiro e névoa, quase irreal,
os dizia, com a mesma expressão
sublime e sagrada de quem diz uma oração!
Jorge Trabulo Marques
Lisboa, 27 de Novembro de 2006
Lembra-te
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny, in "Pena Capital"
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny, in "Pena Capital"
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