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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Algures no Golfo da Guiné, 17 de Novembro de 1975 - Há 45 anos - 28º Dia a bordo de uma piroga - Com estômago completamente vazio...e o cabelo ensopado de água salgada e enegrecido por óleo de coco – Alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo!

Jorge Trabulo Marques

 Ondulam nervosas e escuras as  águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso;  nem tão pouco posso dormir nem descansar “Vem, Noite antiquíssima e idêntica”, “Vem sobre os mares”,  Sobre os mares maiores, Sobre os mares sem horizontes precisos” “Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito. Só humanitariamente é que se pode viver” -   “Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti. Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito, Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo” F. Pessoa


CONTINUO SEM PESCAR E A GUARDAR O TUBARÃO, JÁ ESTRAGADO. - BASTANTE ME CUSTA  SACRIFICAR AS MINHAS ÚNICAS COMPANHEIRAS QUE VÊM PERNOITAR NA MINHA CANOA ...MAS, OH MALDITA  FOME! A QUE CRIME ME LEVASTE!..

Diário de Bordo  - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto, tenho que me valer destes recursos

Diário de Bordo  - Deve ser uma da manhã do 28ª dia. É noite e está luar!...Até agora o tempo tem estado bom. Mas o  mar está muito agitado,  com uma  uma calema muito forte! E eu ainda  nem me deitei nem cruzei os braços, vou a velejar. O que me obrigo a uma atenção redobrada. A canoa balanceia bastante! E eu já ergui  a vela mais pequena para dar outro equilíbrio à canoa.

  Há umas formações de nuvens lá ao largo...Esperemos que entretanto não chova 

Diário de Bordo  - 3  Os trabalhos que acabei de executar, são trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder a isto e evitar  que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...


Diário de Bordo  - 4 Devem ser aí 7 da manhã do 28ª dia. A situação é muito enervante!...O mar continua agitado!... Ao amanhecer surgiu uma trovoada violenta que deixou o mar muito cavado!... A canoa anda para aqui a balançar  de um lado para o outro e torna difícil o meu equilibro....O tubarão dá um pivete dos diabos!... Está a cheirar mal!... Tenho  tentado pescar e não consigo pescar nada!... Há aqui uma série de peixes parasitas que mal lanço a isca vão logo comê-la!... Simplesmente, não ficam lá presos, porque o anzol é demasiado grande.

Estou  realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui esfomeado!...Enfim!...

As correntes mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à Nigéria mas aos Camarões.

Diário de Bordo  - 5 "Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite..." 

Diário de Bordo  - 7  Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... (..) Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...

Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das águas,  brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora  cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar ainda mais visível  a face conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro horizonte  que me envolve, que continuam  a revelar-se, como olhos de assombrosa   e velada ameaça!..
 .
Sim, alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! -  Ondulam nervosas e escuras águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso;  nem tão pouco posso dormir nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza,  a canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra  de cada onda do imenso manto tumultuante. Sei a direção que toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.


Sozinho, apreensivo e triste, lá vou   balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem poder dormir,  lá vou velejando,  impossibilitado, mais das vezes, de o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.
Mas, oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso -   Jamais força alguma a desviará a impedirá  de mostrar à Humanidade e a toda a Criação,  as várias faces do seu rosto. Mas, o meu destino, como será?!... Sozinho e abandonado,  debaixo da sua luz,  ao sabor dos caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o  meu  caminho?!... .. Quem me responde?!... 

A que  enseada de águas calmas, límpidas e profundas, a que  bom porto de abrigo ou praia de areia fina,  a minha  canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa,  promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a  ser  atirado e despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a  tão desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão viçoso e perfumado,  a  tão ansiada terra firme?!..  

Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago,  acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o  meu aspeto, magro, atormentado,  queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!... 

Âncora flutuante

Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho,  o  suspeito,    desembarcado de barco  espião ou pirata?!...


Dez dias depois, conheceria a resposta -  detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial,  um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como  outra qualquer, mas a  sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento,  vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.

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