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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

BIOKO À VISTA - ILHA DO “DIABO” FRANCISCO MACIAS NGUEMA – QUE ME ESFORCEI POR EVITAR, MAS NA QUAL APORTARIA 20 DIAS DEPOIS: TOMADO POR ESPIÃO E PRESO NUMA DAS CELAS DOS CONDENADOS À MORTE - LIBERTADO PELO ACTUAL PRESIDENTE DA GUINÉ EQUATORIAL, TEODORO OBIANG

Jorge Trabulo Marques - Jornalista 



Conheci este homem há  37 anos - No dia 3 de Dezembro de 1975. Chama-se Teodoro Obiang Nguema Mbasogo - É o Presidente da Guiné Equatorial. Salvou-me de ser condenado pelo seu tio,  o auto-proclamado Presidente Vitalício Francisco Macias Nguema, que derrubaria em 3 de Agosto de 1979 - Depois de 38 longos dias à deriva numa piroga, acostei numa praia  deserta, orlada por vegetação densa e luxuriante, de Bococo.  Ilha de Bioko.  Durante algumas horas, ainda improvisei nas margens uma cabana para ali me deixar a repousar por alguns dias; pois não me faltavam cocos e raízes de mandioca. 


Mal me arrastava de fraqueza mas sentia-me como se estivesse a viver as aventuras de um inesperado Robinson Crusoe - E, mesmo ainda hoje, não sei se sentiria vontade de sair dali tão cedo. Porém, quando me apercebi de que havia um carreiro, muito batido, que ali desembocava e que poderia ser sinal de que a praia não era totalmente selvagem (de resto, pouco depois do nascer do sol e antes de a abordar, já ali tinha visto, na pequena língua do negro areal, um homem à cata de ovos de tartaruga) pelo que não tive outro remédio senão seguir aquele mesmo careiro, que me levaria a uma finca  - à sede de uma plantação de cacau.  Tal facto, ia-me custando a vida. 

Tomado por espião e depois de ter passado a primeira noite nos calabouços de uma esquadra, fui transferido algemado para a cadeia central, o famigerado  cárcere,  no qual foram encarcerados, torturadas até à morte  centenas de pessoas - Da minha miserável e nauseabunda cela, pessoalmente pude testemunhar os gritos lancinantes de sofrimento e de pavor de algumas dessas vitimas, ao serem espancadas  pouco antes de serem enforcadas, o que acontecia todos os dias a partir de certas horas da noite.

Depois de ter sido encarcerado numa  das mais tenebrosas prisões de África, por ordens expressas do seu tio, o então jovem Obiang, confessava-se extremamente intrigado com o  insólito desembarque clandestino de um português numa canoa e  quis inquirir-me pessoalmente.  

A referida cadeia  fora mandada construir no tempo colonial espanhol.  Chamavam-lhe, naquela altura,  a Cadeia Central e situava-se junto à Praia Negra, da cidade de  Malabo,  capital da Guiné Equatorial , Tratava-se, efetivamente, da famigerada Black Bech     "Dizer Black Beach é dizer a morte. Quando um prisioneiro chega a essa prisão, sua família começa a preparar o caixão. -"To say Black Beach is to say death. When a prisoner arrives at this jail, his family begins to prepare the coffin." 

.Uns dias depois de ali ter sido encarcerado, fui conduzido ao edifício do Comando da Polícia e das Forças Armadas (aliás, contiguo à cadeia) onde se encontrava, Teodoro Obiang, sendo ele, então, o supremo  comandante,  que me mandou chamar ao seu gabinete - Foi o primeiro gesto de cortesia que eu encontrei a nível das autoridades policiais - Estou ainda hoje  plenamente persuadido de que foi ele que me salvou de ser condenado.

 

"Durante o chamado "reinado do terror", o ditador macias Francisco Macías Nguema liderou quase um genocídio  (...) Nos últimos anos de seu governo,  a Guiné Equatorial, chegou mesmo a ser conhecida como a "Auschwitz da África" - In Malabo 
"Guineans believed their first president had supernatural powers. Using the knowledge of witchcraft he inherited from his sorcerer father, President Francisco Macias Nguema built a huge collection of human skulls at his homestead to beat his subjects to submission" In FRANCISCO MACIAS NGUEMA. The mad man from Equatorial




 







A MENSAGEM SALVADORA DO MLSTP - com data de 27 de Setembro de 1975 - 67 dias depois haveria de me poupar a vida



 A canoa foi carregada a bordo do pesqueiro Hornet, em 15 de Outubro de 1975 ao largo da Baía Ana de Chaves.  No dia 18, de manhã,  o pesqueiro fundeou  ao largo da Ilha  de Ano Bom- Próximo daquela que ainda hoje é considerada. A ILHA ESQUECIDA NO MEIO DO ATLÂNTICO Ao pôr do sol, inesperadamente,  a canoa foi arreada por ordem do comandante, alegando que a canoa estorvava a pesca e que já não podia deixar-me na zona da grande corrente equatorial, que me arrastaria a oeste ao longo do oceano. Penso que, àquela hora, com a noite prestes a cair, o fez mais para me atemorizar e me convencer a desistir.

Mas enganava-se: eu já havia enfrentado  vários tornados, noites escuras e tempestuosas e, na minha mente, havia uma ideia longamente amadurecida e bem determinada: - Ir novamente ao encontro da imensidade atlântica! Ir ainda mais longe, custasse o que custasse!... Ninguém podia demover-me desse propósito e do significado que lhe pretendia atribuir. -  Estando o mar calmo, não havendo vento, dada a proximidade da Ilha, havia pois o risco de poder  ser assaltado... Praticamente, não consegui sair do mesmo sítio e sempre com os olhos na pequena ilha que tinha ali bem próximo, receoso que alguma canoa saísse de lá.  Até porque as últimas palavras que ouvira do alto do convés, foram bem esclarecedoras: "escapa-te daqui o mais depressa que puderes, senão te roubam!!"... Já com as primeiras sombras do curto crepúsculo e após um  giro em torno do horizonte, o referido barco aproximou-se de mim e voltou a carregar-me a piroga, prometendo largar-me no dia seguinte. Às tantas da noite, já com o pesqueiro de novo fundeado ao largo e envolvido por enorme agitação, varrido de  proa à popa,  pela já habitual tempestade noturna da época das chuvas, que o assolara já nas anteriores noites, sim, depois de muitos dos tripulantes virem junto de mim, tentando persuadir-me a  ficar a bordo com eles ("Jorge! Não vês, como está o mar?!... Vais morrer!!.. Fica connosco!.." ) o imediato veio falar comigo para me apresentar na cabine do Comandante: quis dissuadir-me a desistir da viagem,  convidando-me a trabalhar a bordo.  Não tendo aceite a sua proposta, obrigou-me assinar um termo de responsabilidade.


Na manhã seguinte, a  "Yon Gato", é  finalmente arreada ao largo de Annobón, com rumo de retorno a São Tomé - Mal o  sol equatorial  raiara, como que emergindo do fundo do vasto manto azul circular: à voz de "canoa ao mar"! Lá fui sozinho à minha vida, rumo ao Norte, munido apenas de uma simples bússola! Desiludido por não ter sido largado um pouco mais a sul e a oeste, lá parti, de regresso a São Tomé, pelo desconhecido oceano a fora, a pensar em refazer nova viagem e com o apoio marítimo  de alguém que não me traísse! - . Após um dia de navegação normal, com vento pela popa e à vela - mas sempre perseguido por duas canoas  para me roubarem os alimentos, dada a extrema penúria vivida naquela ilha - surge o inevitável temporal: um violento tornado, ao princípio da noite, vindo do sudeste,  uma súbita rajada de vento seguida por uma enorme vaga, apanha-me desprevenido e ainda com a nova casca de noz,  mal acabada de experimentar,  solta-me o leme (que lhe adaptei - e só por milagre também eu não fui atirado, com a cana do leme, para o seio daquela escurissima confusão, que só a curtos espaços os relâmpagos iluminavam) deixa-me a piroga atravessada à vaga e desgovernada, varrendo-me os apetrechos e forçando-me alijar da maior parte de viveres para aliviar o lastro e não ir ao fundo




- Lá foram mandados ao mar três bidões de água potável  e  as latas de conserva  oferecidas a bordo do Hornet. Apressei-me a enrolar a vela e a colocar o mastro (suplente) de través para lhe conferir alguma estabilidade e a lançar o 4º bidão de plástico, meio de água, preso a uma corda para fazer de âncora flutuante de modo a forçá-la a estar de proa à vaga.. O colchão insuflável, coloquei-o à proa com a lanterna, sobre o estrado) para o que desse e viesse, sim, era a única boia que dispunha e eu não sabia ainda muito bem como a canoa iria resistir e se comportar.. Escusado será dizer que a noite fora pavorosa!...Não há palavras para a descrever..De manhã improvisei um remo com um barrote e uns bocados que arranquei da cobertura, junto à popa..Sim, nunca cruzei os braços, nunca me dei por vencido: foram infinitos os momentos em que a vida esteve sempre presa  por um fio. Mas havia que lutar.



Era o começo de um longo e exaustivo tormento . Encontrava-me no Atlântico Sul , em pleno mar alto,  a 350 km da costa oeste do continente africano  e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé. As chuvas constantes da primeira semana, com o horizonte sempre encoberto, impedir-me-iam de avistar São Tomé. Mais tarde avistei a Ilha do Príncipe e Ilhéu das Tinhosas, mas, a falta de remo adequado, não me permitiram a aproximação. Por fim, a 27 de Novembro, acostei numa praia de Bioko (ex-Fernando Pó) .Onde fui preso e encarcerado por suspeita de espionagem.

"MENSAGEM DO POVO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE, PARA O POVO BRASILEIRO" - Que não chegou ao destino (dois meses após a independência) mas continua perfeitamente actualizada.



"A recente independência  nacional de S. Tomé e Príncipe, e a consequente libertação do nosso povo do domínio colonial português, reforça a afinidade dum passado histórico comum com o Povo Brasileiro, e daí, a razão de ser de uma irmandade que importa  reviver, sempre que possível, para se reforçar. 



Assim, aproveitando a travessia  atlântica do camarada Jorge Trabulo Marques, que servindo-se de uma simples canoa, vai percorrer  o mar, de S. Tomé ao Brasil, evocando a rota por que, na era retrógrada, os escravos eram conduzidos  para as plantações  da cana do açúcar, o povo de S. Tomé e Príncipe, representado pela sua vanguarda revolucionária,  o MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE (MLSTP), saúda fraternal e calorosamente, o povo irmão do Brasil" - Excerto


No dia 3 de Dezembro de 1975 quatro anos antes de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo,  ascender ao poder., havia-me chamado ao seu gabinete para saber a razão pela qual me havia metido num "canuco" e desembarcado ilegalmente numa das praias, pois o seu tio suspeitava que eu fosse um espião ao serviço do imperialismo americano para recolher secretamente informações e me juntar aos inimigos do povo - Claro, que na cabeça de Macias, não encaixava a ideia de que um europeu pudesse meter-se numa piroga para fazer uma aventura, que não fosse a de ter  sido largado (nas proximidades) por um qualquer navio de guerra inimigo do seu regime.

Se não se desse a circunstância  - como explicarei mais adiante - de possuir uma mensagem do MLSTP ao Povo Brasileiro, mas sobretudo graças à   generosa e humanitária compreensão de seu sobrinho, Teodoro Obiang, sim, dificilmente teria  escapado ao fuzilamento. Mesmo quando fui libertado, o seu sobrinho autorizara-me a permanecer na Ilha e até a aceitar o convite (que me havia feito o seu Comissário) para trabalhar nas fincas, dado ser técnico agrícola e ter experiências das roças.  E ele gostar "muito do trabalho que os portugueses, ali haviam desenvolvido nas fincas" - Só que, o ditador Macias, continuava desconfiado e ordenou a minha imediata expulsão - Estava autorizado a sair mas não podia permanecer 


 No passaporte ficaria escrito que tinha quinze dias para partir de qualquer fronteira, mas não foi isso que sucedeu. E a minha sorte foi que nesse dia havia o avião da Ibéria, quando não teria que sair a nado - O pior é que ninguém queria pagar-me a viagem. E  o avião não podia levantar voo sem mim. Foi um dilema para o comandante, que só foi resolvido duas horas depois da hora prevista da partida - Mas isso dá outra história.





SAUDAÇÃO ESPECIAL AO POVO DA GUINÉ EQUATORIAL


Teodoro Obiang é  um dos líderes africanos, com a maior longevidade no poder. Não é minha intenção vir questionar a  situação política da Guiné Equatorial. Não pretendo fazer aqui essa análise. Mas agradecer, uma vez mais, ao Presidente Obiang, ter-me salvo de ser condenado pela loucura assassina de Macias, seu tio, quando me enviou para a cadeia da morte. 

E desejar ao povo daquele país, paz, prosperidade, progresso e liberdade  Em 2004, o país foi alvo de uma tentativa de golpe de estado, sob a orientação do principal líder da oposição, com o apoio de um grupo de mercenários liderados por Simon Mann e por Mak Thacher, filho de Margaret Thatecher -G1 > Mundo - NOTÍCIAS - Guiné Equatorial emite ordem de prisão Obviamente, sob a cobiça inglesa e americana  Guiné Equatorial: a mão de Londres? ****EUA e Inglaterra foram cúmplices na tentativa de golpe da Guiné Equatorial..


 NEO-COLONIALISMO NÃO DESARMA - AS ILHAS DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE TAMBÉM ERAM O ALVO DA GULA NEOCOLONIALISTA


Segundo noticias, então veiculadas pelo "O Sunday Times de Joannesburgo noticiou (...) a tentativa dum golpe de estado em Guiné Equatorial era só uma parte dum plano maior para tomada de poder neste país, em São Tomé e  Príncipe e Príncipe e no  DR CongO". São Tomé alvo de ataque por Espanha?


Mais uma vez, as potências externas  em vez de  contribuírem para o desenvolvimento do processo democrático dos países africanos, optarem pelos jogos de poder. Foi assim que começou a guerra do Biafra. Muitos dos mercenários, que tomaram parte no fracassado Golpe de Estado, encontram-se ainda detidos na prisão da Praia Negra, conhecida Black Beach prison

"Convém enfatizar que a avaliação  do governo de Obiang não pode ser feita, como pretendem alguns, comparando-os com os 11 anos de governo de seu tio, Francisco Macías Nguema, primeiro presidente do país centro-africano, logo após sua independência da Espanha, em 1968. A sangrenta ditadura de Macías foi de um horror e de uma crueldade indescritíveis".Guiné Equatorial: corrupção, miséria e petróleo -......Guiné Equatorial, apreciada pelo petróleo e criticada pela ditadura ...
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 CONFIRMARAM-SE OS MEUS RECEIOS   PARA NÃO APORTAR NAQUELA ILHA

7 de Novembro, 1975 - Ao 18ª dia, de facto, não tinha a menor dúvida: eu via perfeitamente os contornos de uma grande ilha – E só podia ser Bioko , antiga colónia espanhola, “descoberta” , em 1471, pelo navegador português, Fernando Pó -  Pareceu-me que não estava muito longe desta ilha, e, talvez, se eu naquela tarde, erguesse a vela, possivelmente os ventos e as correntes me arrastassem para lá, mas tive medo que me prendessem e hesitei – Tendo, porém, acabado por ali acostar, 20 dias depois, ou seja, ao 38º dia, já no limiar da minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e preso. Antes de  transcrever o que registei no pequeno gravador, referente ao 18ºdia, vou aqui recordar o drama que ali vivi.

Na verdade, após ali ter ido parar, depois dos longos 38 dias de solidão no mar, muitos dos quais sem comida e bebendo água das chuvas ou água salgada,  só vim a saber que era a Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), quando me pus a caminho  pelo mato adentro, até à sede de uma Finca (roça). Ali fui bem recebido, porém, quando o sargento da Polícia chegou, tudo mudou de figura - Este desatou logo aos berros a incriminar o funcionário da Finca por me ter acolhido e dado de comer. Seus Traidores! Seus encobridores! - "Amanhã quero que se apresentem no meu gabinete! " mas o encarregado, acabou também por ir no mesmo jipe. Embora, já noite, obrigou-me a ir mostrar-lhe a canoa, que já estava toda desfeita pelo impacto das ondas na areia, e também dado o estado em que já se encontrava; então mais raivoso e desconfiado ficou, pensando que fosse eu que a tivesse destruído e   queria saber onde eu tinha escondido as armas

De regresso à Finca, forçou-me a manter-me  de pé, a ficar em sentido, frente a uma secretária, durante várias horas: às vezes eu caía, pois eu mal podia andar, quanto mais estar de pé, mas ele imediatamente me  puxava pelos cabelos ou berrava - Ponha-se de pé! Respeite a autoridade!! - E lá tinha eu que apelar às forças que me restavam, durante  o tempo em que durou o longo e exaustivo interrogatório e  revistou minuciosamente os poucos trapos que me restavam. Ainda hoje me custa a crer como não me confiscou os rolos e as cassetes - 


Eis algumas passagens do pesadelo vivido naquela ilha, descrito mais tarde: "Serão 10 horas da noite, chega finalmente o esperado carro da polícia. Dentro dele saem  dois indivíduos que imediatamente se dirigem para o interior da casa onde me encontro. Entram e limitam-se apenas a dar as boas noites num tom frio e meramente formal. Não estendem as mãos a quem quer que seja.Mostram-se sisudos e com ar de muita importância.Não vêm fardados. Têm, apenas, sobre o bolso da camisa a esfinge do Presidente Macias.Mas o seu aspeto não ilude ninguém.Têm modos duros e a sua presença provoca um certo ar intimidativo e de gravidade nos circunstantes, que .subitamente param de falar e se entreolham como que alarmados. Os que estão sentados têm que se levantar. (...) Reina um ambiente de severa circunspeção. Tudo leva a crer que se vai proceder a uma espécie de julgamento sumário. Sou olhado com manifesta suspeita e desconfiança. Como se acaso se tratasse de um perigoso criminoso.(...)

Sobre a mesa está a relação das minhas coisas e toda a minha documentação pessoal. Começam as primeiras inquirições. Um deles, que presumo ser o chefe, deita-me uma vez mais um olhar severo e principia a mexer na papelada que tem à sua frente. Analisa-a e revolve-a várias vezes, depois volta-se para mim: Que atrevimento foi o teu de vires aqui espionar a nossa ilha?!!...Que barco te largou?!!...Que abuso foi o teu de entrares clandestinamente na República da Guiné Equatorial?!!...Não sabes que te podemos matar?!!...Ou não tens consciência da gravidade do crime que cometestes?!...Vá! Responde!!...

Chefe! Não cometi crime nenhum! Não venho espionar a vossa Ilha.Sou um náufrago!... (...) Não vê que estou com o corpo fraco; já há muitos dias que não como nada e necessitava que me prestassem a vossa assistência, fossem misericordiosos  para comigo  ou me levassem para um hospital.-Não mintas!! Não sejas fingido e mentiroso!!!...Daqui a bocado, já te digo onde é o hospital.

A relação das minhas coisas já havia sido conferida e descriminada  pela Comissão Administrativa da finca, estava tudo anotado. No entanto, ele faz questão de conferir tudo.As cassetes são escutadas uma por uma. Os meus papéis, inspecionados até ao mais ínfimo pormenor. Faz anotações sobre anotações. Verificando que faltam algumas coisas(que havia oferecido aos trabalhadores da finca),ordena ao encarregado que quer o resto das coisas e a presença de todos os indivíduos que as aceitaram.

(...)Passa já da meia-noite. Todos se encontram já deitados em suas casas. São acordados e obrigados  a comparecerem, com o blusão de oleado, a lanterna, duas camisolas e os bidões de plástico. (...) Seus canalhas!! Seus encobridores!... Seus patifes!. Seus traidores! À manhã, pelas 9 horas,quero-os no meu gabinete!"

(
...) São quatro da manhã. À nossa frente sobressai uma mancha de luzes. Vejo que é  um centro  urbano.Tem aspeto de ser vila ou cidade (presumo  que tenha sido Luba): "Que lugar é este? - indago."¿Por qué?! .. ¿Qué te importa saber eso! - Responde o chefe da polícia. Fica situado à beira-mar, e, pelos barcos pesqueiros que estão fundeados na baía que o ladeia, denota ser um razoável centro piscatório. Após algumas voltas pelas suas artérias,eis que o jipe abranda e sou imediatamente conduzido ao interior de um edifício. É uma esquadra, não tenho a menor dúvida. À porta está uma sentinela e a inscrição: Policia Nacional de Seguridad


Entro para o gabinete do chefe da esquadra, para onde também são encaminhadas as minhas coisas.Fico de pé frente à sua secretária. Momentos depois manda-me descalçar, passam-me as mãos pelos bolsos e ordena que seja conduzido a uma cela.Aberta a porta, sou empurrado de rampelão lá para dentro.Entorpeço e caio.No chão estão algumas pessoas deitadas que não vejo. Debruço-me e tacteio para tentar descobrir um espaço onde possa deitar-me.Mas só toco em corpos, quase amontoados, estendidos lado a lado como se fossem sardinhas enlatadas.De pé não consigo ficar porque me sinto demasiado fatigado.Necessito de dormir de qualquer maneira nem que seja sobre espinhos.Por fim,lá me deito.De lado e com as costas voltadas para a parede.No chão apenas uma esteira a separar a frieza do cimento.Mesmo assim adormeço que nem uma pedra.


Nove horas da manhã. A cela é aberta e somos acordados. Todos me olham estupefactos e surpresos. A minha surpresa também não é menor. Entre os meus companheiros de infortúnio há duas crianças, duas mulheres e quatro homens (trabalhadores nigerianos. As crianças são ainda de peito.Isto impressiona-me, meu Deus - Numa outra postagem, conto apresentar a transcrição do relato pormenorizado das minhas vicissitudes naquela ilha


Ainda no período dessa manhã,   meteram-me numa carrinha, que fazia de transporte público, ladeado por dois polícias armados de metralhadoras, os quais, após ter chegado a  Malabo, me conduziriam à cadeia da morte - Mal transpus o portão, vi logo que estava metido num grande sarilho. O ambiente era de facto sinistro. Ouvi logo gritos de prisioneiros a serem inquiridos e torturados. Os dois policias (que, de resto, até tinham sido simpáticos, tendo-me até comprado umas bananas pelo caminho, por se terem sensibilizado com o meu estado de fraqueza) quando me entregaram aos carcereiros, foi como se me tivessem lançado às feras: agarraram-me pelos braços e  levaram-me aos empurrões até à cela,  visto eu mal poder andar - e ainda para mais algemado.  Aberta a porta de ferro, fui de novo empurrado: as algemas só mais tarde mas retiraram, tendo entretanto urinado nas calças: ou seja,  só me desalgemaram  depois de ter sido submetido a mais um longo e exaustivo interrogatório, após o que voltaram a  encarcerar-me na dita cela de alta segurança, de reduzidíssimas dimensões, na qual dispunha apenas de um balde para as necessidades e de um banco para me deitar, que não tinha mais de metro e meio de comprimento.  Mesmo assim eu era um felizardo: a maioria das celas, só se fosse a esteira que o próprio condenado levasse.

PIOR DE QUE CELA, AUTÊNTICA LIXEIRA DE RATOS E DE CHEIROS NAUSEABUNDOS

Quem fornecia a comida aos prisioneiros, eram os familiares. Lá dentro não havia cozinhas nem refeitórios. Ao lado da minha cela, situava-se a casa de banho dos guardas prisionais,  que me mandava um pivete insuportável, mas que eu não podia utilizar. Havia baratas e percevejos por todos os lados. As ratazanas entravam na minha cela, chegavam a passear-se por cima de mim e a morder-me nos dedos dos pés, quando me deitava - Por vezes no chão, pois não conseguia estender-me e segurar-me no  banco. Também nem sequer dispunha de uma torneira ou de um lavatório. Para beber um copo de água tinha de  o implorar aos guardas, que só mo levavam quando lhes apetecesse. Por outro lado, também tinha de levar com o cheiro das minhas fezes, pois, só de manhã eram recolhidas. 

Como se não bastasse o estado de desnutrição, que quase me arruinara, tinha agora que levar com os suores e cheiros do meu corpo, pois não tinha onde me lavar. Daí que, quem ali desse entrada, não tardasse a que, ao fim de alguns dias, tivesse a sensação de que, em vez do prisioneiro se sentir um ser humano, se identificasse como um pária e ficasse assim mais propenso a aceitar a condenação como um castigo justo e inevitável. Felizmente, nunca me deixei abater, porque, as adversidades do mar, me haviam  preparado para todo o tido de dificuldades, no entanto, a passagem por aquela prisão (breve é certo) constitui uma marca negra nas minhas recordações da Guiné Equatorial e na minha vida.

MAS QUE MAL TERIA FEITO EU, PARA, APÓS OS 38 DIAS DE SOFRIMENTO  NO ALTO MAR, DAR ENTRADA NUM PRESIDIO DOS CONDENADOS À MORTE?!... - CHEGUEI MESMO A PENSAR SE NÃO TERIA VALIDO MAIS A PENA TER FICADO NA BARRIGA DE UM TUBARÃO.



 


Naquela altura, o pior que me poderia acontecer era acostar em qualquer ponto da Guiné Equatorial, ou nalguma das suas Ilhas ou no continente. Eu sempre pensei que os maiores riscos, não eram tanto as dificuldades no mar, mas a grande incerteza das condições em que poderia ser recebido onde fosse aportar. Quando fiz a viagem de São Tomé à Nigéria, depois de 13 dias solitários no mar, eu não fui maltratado mas não me livrei de ter sido privado da minha liberdade durante 17 dias, após o que me repatriaram para Portugal -  Na viagem dos três dias de São Tomé ao príncipe, fui preso e espancado pela PIDE - Ó sorte macaca! Que no mar me protegeste  e em terra me abandonaste!



"QUE ATREVIMENTO É ESSE!!" - QUASE ME IAM MATANDO QUANDO HASTEEI A BANDEIRA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE



Na viagem à Nigéria, levei as duas bandeiras: a de São Tomé e Príncipe e a de Portugal Mas, nesta viagem,  apenas levei o pavilhão do jovem país independente aonde regressei sem um centavo na algibeira, onde encontrei todo o apoio que precisei para mandar construir a canoa e para a aparelhar.- Sim, e donde parti para grande aventura.  No meu cárcere, em Bioko, um de dia resolvi hastear a  Bandeira Nacional de São Tomé e Príncipe,  - Quando o carcereiro, que, de volta e meia vinha  espreitar a minha cela, topou, mas que heresia!... Foi buscar imediatamente a chave da cela e, ao entrar lá dentro, deu-me um empurrão contra a parede, e, ao mesmo tempo que agarrava nela e a amachucava, levando-a, berrava: Su mercenario! ¿Qué descaro!! Qué falta de vergüenza!! - Não posso dizer que fosse  agredido fisicamente, mas humilhado e submetido a uma incerteza psicológica terrível. É que, após ter dado entrada naquele maldito presídio de condenados à pena capital, contava sempre com o pior: de resto, os presidiários que me visitaram pela janela e me levaram comida, avisam-me logo, com esta pergunta: "És político?!..- A que eu respondi: "Não!" Diz um deles: "Então talvez te safes. Mas não digas mal do Presidente, senão... podem decapitar-te!



Eu tinha realmente informações de que  não era aconselhável ir parar à Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), governada pelo  então  Presidente da Guiné Equatorial, Francisco Macías Nguema, sanguinário e déspota ditador, que dirigia então o país sob duríssima mão de ferro, tendo ordenado o espancamento e o assassínio de milhares de opositores, incluindo alguns familiares – Derrubado, em 3 de Agosto de 1979, pelo seu sobrinho, o actual Presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo através de um sangrento golpe militar, que depois o condenou  a um pelotão de fuzilamento a 29 de Setembro, desse mesmo ano.   Obiang, ainda jovem, com os seus 33 anos (e a juventude é sempre mais tolerante e generosa) era já então o Comandante das Polícias e das Forças Armadas e foi ele que ordenou a minha soltura, depois de me ter mandado chamar ao Comando e após ter passado alguns dias  numa das mais tenebrosas  prisões de África , onde  todas as noites, havia execuções sumárias, já que,  quem ali entrasse, só saía de lá cadáver.  

Na manhã do dia 3 de Dezembro, quando menos esperava, um carcereiro chegou à porta da minha cela, algemou-me e ordenou-me que o acompanhasse - Senti logo um embate no meu coração, que não deveria ser levado para melhor destino - Mal transpus a cela, sou imediatamente agarrado por outro guarda, tendo à minha frente o Comissário da Cadeia, que já me tinha torturado com infindáveis interrogatórios para me conduzirem ao sítio das execuções.

Sucedeu, porém, que, por um feliz acaso, talvez milagroso (pelos vistos, a sorte protege os audazes), soa o telefone no corredor da morte - Era o então o Comandante Teodoro Obaing Nguema Mbasongo, atual Presidente da República da Guiné Equatorial, sobrinho do todo poderoso, Francisco Macías Nguema, a ordenar ao Comissário da Prisão para ser conduzido à presença, ao gabinete do então supremo comandante das policias e das forças armadas, que me recebeu, inicialmente de forma austera e desconfiada: com estas palavras: " O que se passa contigo?!... Porque te meteste num canuco e o que vieste aqui fazer?!.. Lamento mas tenho que cumprir as ordens de Sua Excelência e tenho de o executar hoje!...

Respondi-lhe que era um náufrago e para me soltarem as algemas e lhe mostrar a mensagem do MLSTP, que trazia no bolso atrás das minhas calças - Como estava carimbada, não duvidou da sua autenticidade e, ao sentar-se na sua cadeira de vime(enquanto eu ia permanecendo sempre de pé e à sua frente) me passou a questionar de forma mais descontraída e simpática

Bom, lá tive que voltar a repetir o que já havida dito várias vezes, que não era espião e as razões pelas quais me havia metido na canoa e ido ali parar - Mas, quando o vi soltar uma gargalhada e pedir-me para que lhe contasse mais alguns pormenores dos meus longos dias no mar, disse cá para os meus botões: este é dos meus!... Estou a ver que está a gostar da minha aventura. Por volta do meio-dia, depois de me ouvir, ordenava ao Comissário para me soltarem



POUCOS  DIAS DE CATIVEIRO, MAS AUTÊNTICAS ETERNIDADES - QUEM NÃO RECEBESSE COMIDA DO EXTERIOR, MORRIA DE FOME


A cadeia não fornecia  alimentação: tinham de ser os familiares. Nos primeiros três dias, quem me passou alguma comida (massa de mandioca, regada com  óleo de palma, que mais das vezes a vomitava para a lata das necessidades, pois eu estava magríssimo e, o meu estômago, já não estava habituado a comer alimentos sólidos, há muitos dias), sim, quem me deu alguma comida,   foram os próprios condenados, que trepavam curiosos à minha janela gradeada, durante o curto recreio que dispunham, num átrio para a qual a  minha cela estava voltada. Creio que, naquela altura, devia ser o único europeu preso. Agora, depois que houve por lá uma tentativa fracassada de Golpe de Estado, em Março de 2004, estão lá presos alguns dos implicados. Mas nada que se compare às tenebrosas condições daqueles tempos.  

Nos dias seguintes, passei a receber uma cestinha, com frutos e outros alimentos, por parte  do barbeiro do Presidente Nguema, um amável são-tomense, que era também o representante diplomático e que ali tinha ido a seu mando para  recolher informações a meu respeito - Para que não duvidasse das minhas intenções, pedi-lhe que lhe mostrasse uma mensagem autenticada pelo MLSTP, que lha entreguei para a mostrar ao Sr. Presidente - Mas ele no dia seguinte, devolveu-me, com ar de desapontamento e de tristeza, confessando-me  que Sua Excelência ainda havia ficado mais desconfiado com este papel

- Então, agora,  que acha que me vai suceder?  - Perguntei 

 Respondeu-me, com este argumento: eu disse-lhe era verdade que o Sr. Jorge Marques queria atravessar o oceano  numa canoa - Falei-lhe que  tinha ouvido a entrevista que o Sr. Jorge, havia dado à Rádio Nacional, antes da sua partida, mas ele acha que é truque e que você é um espião e que tem de o condenar ... Bom, enquanto aqui estiver, eu posso trazer-lhe alguma comida.

Agradeci-lhe o generoso gesto da sua coragem e disponibilidade  (sim, a quem daqui volto a mandar um carinhoso abraço de profundo agradecimento), no entanto, ainda mais preocupado fiquei, pois comecei a imaginar, que se o Presidente  Macias não acreditava no seu barceiro pessoal,  era mesmo sinal que eu ia mesmo acabar  por ser enforcado e  passar pelos mesmos tormentos que  se faziam ouvir de noite nos calabouços  de tortura e de execução.

A mensagem  destinava-se a saudar o Povo Brasileiro,  viagem que não consegui realizar, pelo facto do comandante do pesqueiro americano se ter recusado a deixar-me na corrente equatorial, mas junto à Ilha de ANO BOM, onde os ventos e as correntes tomavam a direção Norte, tendo, nessa mesma noite, sido surpreendido por um violento tornado, que me fez perder a maior parte dos alimentos e apetrechos 






Quem entrasse naquela cadeia, entrava para a lista da morte. 



Eu bem me apercebi dos gritos lancinantes e de terror dos  pobres infelizes, que, depois da meia noite, eram executados, não pelas balas (que isso fazia demasiado barulho e ficava caro, pois, naquela altura, o petróleo, ainda não tinha ali feito jorrar milhões de dólares, sendo então considerado o país mais oprimido e miserável de África) mas por garrotes de asfixiamento!. Dessa sina, felizmente, lá me safei, graças a Obiang  - Quando ele veio a Lisboa, por ocasião de uma Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que decorreu no Centro Cultural de Belém, eu dirige-me lá para lhe agradecer pessoalmente o seu gesto. Estou convencido, que, por vontade do seu tio, eu era fuzilado, dado o estado demência e de paranóia, como Macias dirigia o seu país. Bastava-lhe sonhar que um ministro o queria trair, para o mandar logo matar.



Não é seguro que aquela minha hesitação, ao 18º dia, fosse a causa de eu vir a ter que enfrentar mais duas dezenas de dias de um longo e penoso calvário, quando, afinal, tinha ali a Ilha à vista. Fosse como fosse,   levar-me-ia a ser balanceado pelos tornados para todos os quadrantes, que,  sobretudo na época das chuvas – fustigam aquela turbulenta zona do Golfo da Guiné, logrando apenas ali aportar após uma exaustiva luta de sobrevivência – E, ironia das ironias, supondo tratar-se de algum pacifico recanto da costa africana.  Mas era realmente Bioko, conhecida, naquele tempo, por Ilha do Paraíso nas Mãos do Diabo.
 


DÉCIMO OITAVO DIA – MAIS UM BARCO PASSOU A ESCASSA DISTÂNCIA DA MINHA CANOA E ME IGNOROU 

Diário de Bordo 1 - Hoje perfaz 18 dias que ando na canoa “São Tome” (Yon Gato) . Estou próximo da Ilha de Fernando Pó. Vejo-a perfeitamente. Estou a evitar, tudo por tudo, para não ir dar lá. Aliás, se pusesse a vela, o vento arrastar-me-ia, inevitavelmente. Também as correntes me estão a puxar na mesma direção. Vejo lá um barco próximo. Estou aí a umas 15 milhas, possivelmente.

De noite, não choveu mas o mar esteve muito agitado. E eu tive de estar muito atento para evitar ser abalroado por algum barco ou para ver se me aproximava de terra - Dada a extensão deste post, os pormenores, relativos ao 18º dia, foram transcritos para  a postagem seguinte  NÁUFRAGO - 18ª DIA 





2 comentários :

Anônimo disse...

Obrigado pela partilha de aventuras e vivências. Encontrei este blog durante a preparação da minha vindoura viagem a São Tomé.

canoasdomar disse...

Eu é que lhe fico muito grato pela amabilidade das suas palavras. Sei que este meu site é muito visitado mas não é frequente as pessoas expressarem as suas opiniões. Por isso, é sempre gratificante receberem-se palavras de reconhecimento. Obrigado e os meus desejos sinceros de que passe umas boas férias nessas maravilhosas Ilhas de São Tomé e Príncipe