expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Odisseia numa canoa há 40 ano, em Fernando Pó (Bioko) na Guiné Equatorial – Novo calvário me esperava depois de abandonar a praia - Meu Deus!... Mal me posso mexer, ainda ter que descer e subir outra vez a floresta!...


Na costa da Ilha de Bioko - ex-Fernando Pó
Conforme descrevi em postagem anterior, ao 38º dia, de  noites e dias à deriva, de  inarráveis perigos e incertezas, finalmente pude acostar a bordo da minha frágil canoa, algures no recanto de uma nesga de um discreta praia de areia negra, sobre a qual se erguia uma alta montanha coberta de vegetação equatorial. Os detalhes dessa surpreendente e emocionante chegada, já o descrevi em postagem em anterior - A partir daqui, outra aventura desconhecida ia ter pela frente e não menos arriscada: uma caminhada desgastante por  espessa floresta acima. - Depois, disso, os calabouços de uma esquadra e a cela de uma sinistra prisão.


Após algumas horas na margem da pequena praia, contrariamente ao meu desejo inicial, que era o de acampar por aqui alguns dias, até me refazer da minha debilidade física e ao mesmo tempo aproveitar a generosa dádiva, que tão idílica paisagem, parecia querer oferecer-me, como recompensa de tantas privações e sacrifícios, concluo que o mais prudente era abandonar o lugar, ir ao encontro de um local habitado e pedir assistência às autoridades do país, a que pertencesse - Tinha acostado na maior ilha da Guiné Equatorial, mas por enquanto ainda era para  mim uma terra desconhecida e ignorada.   - Não duvidei, pois, que o mais aconselhável fosse mesmo o de virar de vez as costas ao mar e subir a floresta. - Mas, como?!  -  Por onde caminhar?!.... Valendo-me  de uns  apontamentos  redigidos nos dias em que estive preso e de outros que escrevi algum tempo depois de ter voltado a Portugal, eis a descrição que  passo a fazer desta minha segunda odisseia, agora terrestre

DEPOIS DE SOZINHO NO ALTO MAR,  AGORA SOZINHO A CAMINHAR PELA FLORESTA ACIMA - (reconstituição com algumas imagens de S. Tomé)
 

Em S. Tomé, lembrando as aventuras no mar
Em S. Tomé, o mar é todo igual
Esta praia está ladeada por escarpas cobertas de florestas, que se opõem como barreiras intransponíveis.O mato é cerrado e avassalador, a encosta  íngreme e compacta, revestida de um denso verde emaranhado. 

 Vai ser o cabo dos trabalhos sair daqui. Tanto num sentido como do outro, não se descobre uma nesga de areia: a  floresta desce, lá  do alto até às rochas batidas pela rebentação.  Não se descobre  um trilho ou uma única clareira mas não tenho outro remédio senão  pôr os pés a caminho, antes que se faça tarde e a noite me surpreenda no interior deste espesso manto verde. Ficar aqui o resto da tarde, é uma perda de tempo inútil,   parece-me desaconselhável – Adiante!... Há que arriscar!...

Em S. Tomé. numa vereda semelhante
Errando, por entre a brenha densa de  um quase inexpugnável arvoredo, por entre árbustos e fetos gigantes, errando agora em terra, como se porventura ainda andasse   errando no mar, enfrentando uma nova aventura. De género diferente mas  talvez nem por isso menos arriscada.   

Livre como um passarinho mas com uma grande diferença: de  um passarinho, que, além de não poder voar, mal pode caminhar. 

 Despojado de tudo, sem dinheiro no bolso, sem outra fortuna que não a riqueza da dolorosa experiência por que acabava de passar - Sim, porque a maior riqueza espiritual, não advém do ócio, de uma vida cómoda e sem riscos  mas a que resulta das adversidades que se vencem - Sim, e uma aventura no meio das ondas do mar, tal como eu a conheci, propicia sentimentos. emoções, estados de alma, muito intensos e muito variados, impossíveis até descrever! E este lastro, não se perde, fica para toda a vida -  Por isso, não se pode ser poeta, não se pode aspirar a estados elevados de espiritualidade, sem o lastro dos grandes sacrifícios, das privações. Ou  não é este o maravilhoso exemplo que nos legou o próprio calvário de Cristo?... - Eu também vivi um calvário imenso no mar. Felizmente, sobrevivi, tive sorte,  fui bem sucedido. Mas bem podia ter ficado no fundo do mar ou ter sido devorado por algum tubarão, se me tivesse resignado, perdido a fé e a confiança, se não tivesse lutado.

E agora aqui me encontro  no principio de um outro calvário, que tenho pela frente, amparado a um tosco pau. Mesmo a custo, lá  vou caminhando e cambaleando: sem outras armas que não sejam as de um coração ávido por encontrar um rosto amigo.
 
O  céu continua muito nebulado e a noite pode surpreender-me no meio da floresta. Mas,  para onde quer que volte, vejo-me envolvido por  um espesso labirinto de verdura, fresca e pujante. Respira-se um ambiente impregnado por uma autêntica miscelânea de vapores aromáticos, com sabores a raízes, cheiros a barro, a húmus, flores e  frutos verdes, maduros, podres, de ervas e de folhagem variada,  que me inebria os sentidos de intensos perfumes,  povoado de árvores tropicais, enormíssimas, das mais variadíssimas espécies. 

Em S. Tomé - subindo uma vereda junto à costa
O ambiente não  é diferente do que conheci nas  florestas do óbó de S. Tomé, mas não tenho a certeza se esta terra é uma ilha ou uma floresta da costa africana e dos perigos que me possa reservar.  Claro que aqui não há os tubarões, que me atacaram no mar, mas poderão existir  outros riscos e  eu não  trago nada com que me  defender, senão esta simples vara, em que me amparo e  com a qual vou sacudindo alguns arbustos,  abrindo caminho. 

S. Tomé
Perpassa, em torno de mim, um rumorejar permanente de insetos, que se mistura com os gritos de aves, nos mais estranhos sons. Ouço constantes chilreios, vindos de toda a parte. Vejo bandos de aves espavoridas, de  múltiplas cores, que se levantam à minha passagem. O barulho  da rebentação do mar, o bater das ondas nos recifes, já mal se faz soar, é praticamente abafado  pelo ruído da passarada  e do barulho da ramagem que me envolve. Não sei precisar o  que  ainda tenho de caminhar  para me ver livre deste espesso labirinto vegetal mas não posso desistir. 
Entretanto, para minha agradável surpresa, depara-se-me, inesperadamente, um género de vegetação com uma fisionomia completamente diferente: entro numa enorme clareia, onde existe uma plantação de mandioca, por entre plameiras, diversas árvores  selvagens  e bananeiras.  A subida é agora mais suave. E, um pouco mais à frente, até descubro  um carreiro de terra batida. Sigo-o em ziguezague. Sinto-me agora mais aliviado, pois acredito que me há-de levar a um lugar habitado.

PLANTAÇÃO DE CACAU

S. Tomé
Seguindo por um sinuoso trilho, que parecia  nunca mais ter fim e não me conduzir a qualquer povoação, finalmente deixo o carreiro e desemboco numa picada, que vai atravessar uma magnifica  plantação de cacaueiros, de aspeto bem cuidado, com os troncos e os ramos cobertos de lindos e coloridos frutos, que estão pendurados quase desde o chão até às pontas.

O panorama não me surpreende, pois é  muito semelhante ao das plantações dos cacauzais, em S. Tomé. Se não fosse a distância percorrida, os tormentos por que passei, através de tão extenso braço do mar, diria que tudo, afinal, não passou do pesadelo de uma longa noite mal dormida, de um mau sonho, visto que até parece que, subitamente, fui transportado para uma roça de S. Tomé.
Mas então que lugar poderá ser este? – Nem quero imaginar que me encontre na Ilha do ditador Macias!...Bom era que fosse a Nigéria, onde aportei na anterior viagem:
Após a travessia que fiz de canoa àquele país, fui detido, durante 17 dias para averiguações  mas não me trataram mal .

No meio de múltiplas cogitações, abrando o passo. Sinto uma certa inquietação crescer aos poucos dentro de mim. A incerteza do lugar preocupa-me de algum modo. . Estou desejoso  de dissipar as minhas dúvidas. 

S. Tomé
Porém, e após ter caminhado algumas  centenas de metros, por entre a ramagem dos cacaueiros, eis que começo por avistar um pequeno aglomerado de  casas. A partir de agora,  tenho absoluta certeza  de que, a qualquer momento,  poderei ter várias pessoas à minha volta. Desconheço de que nacionalidade. Não interessa. Sou um homem de aventura. Considero-me um cidadão do mundo. O importante é que sejam criaturas humanas. Aliás, já vejo algumas pessoas a andarem de um lado para o outro, lá ao fundo, num terreiro. 

Presumo que já se tenham apercebido da minha estranha presença.Mostram um ar descuidado e natural. Acredito que se vão revelar minhas amigas. Afinal, é do que eu preciso: de amizade, calor humano. É do que me sinto privado nos longos dias do mar.  
 
Roça - S. Tomé
Com certeza que são os moradores desta propriedade de cacauzal, que acabo de percorrer. É provavelmente a sede ou a dependência de alguma roça, como se diz em S. Tomé. O estilo das plantações é quase o mesmo. Com as suas senzalas alguns chalés, tipo colonial e outros edifícios que serão possivelmente as instalações agrícolas.

E, de facto, mal acabo de fazer estas analogias, tenho ao meu lado esquerdo, a primeira casa: baixa, tipo moradia e resolvo sentar-me na soleira da porta. Ao mesmo tempo que vários miúdos, se juntam num semicírculo à minha frente, ora olhando-me, ora entreolhando-se, num misto de espanto e quase mutismo, como se quisessem, através do meu silêncio, decifrar o que me trouxe aqui, com este meu ar estranho, que certamente lhe estou a causar, mas eu  também não me sinto menos espantado e não me atrevo a falar. Estou também demasiado emocionado para proferir qualquer palavra. E, realmente, ninguém ainda ousou perguntar-me nada.

Entretanto, de todos os lados, vejo encaminharem-se  outras pessoas, agora também adultas, na minha direção,  num misto de algum alarido confuso.  Observam-me, entreolhando-se, espantadas, pronunciando monossílabos no seu dialeto. Como estou todo queimado pelo sol e de barba por fazer, devem supor que eu venho do mar. 

Começam então por me fazer perguntas que eu não entendo. Como resposta, ergo a camisola e mostro-lhe a barriga, que está quase metida para dentro, encolhida e vazia, como um fole encolhido. Ao mesmo tempo que faço este gesto, simultaneamente perpassa à minha volta um murmúrio de espanto. Toda a gente levanta a voz numa espécie de pasmo e murmúrio clamoroso. Vejo que todos os seus rostos se mostram chocados e em muitos dos olhares reluz a  expressão de espanto e piedade de mim. Emocionado, não me contenho e começo a chorar, pondo as mãos sobre o olhos para não revelar o meu embaraço e as minhas lágrimas. Mas, compreendendo que venho cheio de fome, há já quem venha junto de mim com umas bananas para me oferecer; aceito algumas de boa vontade. Eu já mastiguei para aí vários frutos e o meu estômago está demasiado debilitado e desacostumado para suportar grandes proporções de alimentos. E esta boa gente também já compreendeu isso e houve quem me pegasse pela mão para me encaminhar para junto das suas habitações e me oferecerem a sua hospitalidade.

O LOCAL É A SEDE UMA FINCA (ROÇA) DE FERNANDO PÓ.

Finalmente, já sei que terra é esta: o administrador, já veio junto de  mim e começou a fazer-me perguntas em espanhol – Sim, depreendi imediatamente que estava na Ilha de Fernando Pó. E também já sei que a  praia onde deixei a canoa, se chama , Bokoko e que pertence  à propriedade agrícola onde agora me encontro. Aqui não lhe dão o nome de roça mas de finca. 

Confesso que estou muito satisfeito. Desde que aqui cheguei, têm-me tratado muito bem. Afinal, tanto receio, não sei porquê. Foi realmente uma tremenda asneira não ter aportado logo nesta ilha mal me aproximei dela pela primeira vez. Estou a aguardar que as autoridades me venham buscar. Já se pôs o sol mas já me informaram que só deverão chegar daqui a algumas horas, portanto já de noite. Espero que sejam igualmente simpáticas, tal como tem sido   esta boa gente, que me acolheu com muito  carinho e generosidade. 

Senzala em S. Tomé
O administrador já me levou a sua casa, onde tomei um duche e me serviu à mesa um saboroso prato de comida, de  arroz com atum de conserva. Mas, apesar de sentir um grande apetite, não quis ir  além de umas garfadas, pois não posso exagerar, enquanto me não habituar o estômago a outra dieta, que não a do jejum  forçado e da fome, a que já vinha, tão duramente habituado. Agora quer que eu o acompanhe à praia para lhe mostrar onde está a canoa e trazer as minhas coisas: no telefonema que fez à polícia, foi-lhe dito que querem que ele faça uma relação de tudo. E até da capa de algumas peças de roupa, que trouxe comigo: quiseram-mas comprar mas eu ofereci-as.

Meu Deus! Eu,  mal me posso mexer, ainda ter de voltar  lá em baixo ?!... A ter que descer e a subir outra vez a floresta!...  Porque me não deixam descansar e vamos lá à manhã, durante o dia?!...  Mas  o administrador insiste que são ordens da polícia, que ele não pode desrespeitar  e  tenho de o  acompanhar: diz que conhece bem o caminho, que não é difícil ir lá. Chama alguns trabalhadores, passa-lhes uma lanterna para uma das mãos, já que, com a outra, pegam numa catana.  E lá parto para outro calvário – Mas a descer, até nem é muito difícil; o carreiro está desimpedido e limpo, cheio de voltas mas transitável. Eu ainda me apercebi de uns metros dele, quando andei por ali às voltas  mas, ao meter-me pela floresta adentro, perdi-o de vista. 

Aqui o sol, põe-se, tal como em S. Tomé, quase à mesma hora, pouco depois das cinco  e meia. Agora, serão aí umas oito da noite, estou de novo junto à margem da praia e a ouvir o marulho das mesmas ondas, que para aqui me arrastaram, depois de um longo pesadelo, a desfazerem-se na areia escura . À minha frente é a vastidão do mar e uma imensa escuridão – E, a canoa, afinal, onde está?!.. Eu faço esta pergunta para mim, em silêncio, mas o administrador fá-la de forma bem pronunciada, se bem que não de modo agressivo – Sim, porque o que ali se vai descobrir, são apenas destroços – alguns destroços da canoa, visto outros já andarem a boiar por vários lados da rebentação, situação que o deixa  de algum modo incrédulo e confuso. Mas vai mesmo acreditar que é o que resta da minha canoa: é que, aos destroços  há os bocados de contraplacados, que continuam pregados nas partes que não foram arrastadas; além disso estão pintados de vermelho e aqui não existe esse hábito.

Localizado o contentor, com as peças da roupa, que não tinha podido levar e que puxara para fora da praia,  um dos homens, lá o pôs às costas lá nos pusemos de volta pelo carreiro acima. Agora, sem ter que me amparar com um pau, já que, um  dos meus acompanhantes, se prontificou a puxar-me  pela mão. Mesmo assim, sinto-me derreado. Foi um enorme sacrifício, que fiz para  regressar ao terreiro da finca e  subir as escadas da casa do administrador, cuja imediações da frontaria, já se transformaram numa autêntica romaria. Aliás, antes de voltar à praia, já me havia apercebido disso,  que havia sempre um magote de gente, nas imediações da porta. 

Todos os habitantes das senzalas, querem ver-me e conhecer a minha história. Tenho a impressão que não se tem falado de outra coisa, senão do branco que deu à costa numa canoa. Mostram-se muito admirados e cheios de curiosidade pela minha aventura. Quando passei por entre eles, antes de subir as escadas, não tiravam os olhos de mim, mirando-me dos pés à cabeça, como se fosse uma figura vinda de um outro mundo.

Às dez da noite chega a polícia, que depois de um exaustivo interrogatório, me transporta no seu jipe para os calabouços da esquadra - É o do que lhe vou falar na próxima postagem

Nenhum comentário :