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quarta-feira, 26 de julho de 2017

Em S. Tomé há dois anos – Exposição “SOBREVIVER NO MAR DOS TORNADOS – 38 DIAS À DERIVA NUMA PIROGA” - No Centro Cultural Português, em S. Tomé - 28 a 30 de Julho “Contar-te longamente as perigosas/ Cousas do mar, que os homens não entendem,/ Súbitas trovoadas temerosas,/ Relâmpagos que o ar em fogo acedem”….

Exposição - No Centro Cultural Português, em S. Tomé - 28 a 30 de Julho

SOBREVIVER NO MAR DOS TORNADOS
38 DIAS À DERIVA NUMA PIROGA

Finalmente, graças à compreensão e ao louvável acolhimento da Embaixada de Portugal em São Tomé e Príncipe vou poder concretizar um velho sonho: apresentar, na capital destas maravilhosas ilhas, e no Centro Cultural Português, a exposição fotográfica e documental, que esteve patente no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, de 10 de Março a 10 de Abril de 1999, inserida no espírito da Expo98, “Os Oceanos”, subordinada ao título: SOBREVIVER NO MAR DOS TORNADOS – 38 DIAS À DERIVA NUMA PIROGA.


Sou natural da aldeia de Chãs (20 de Janeiro de 1945) do concelho de Vila Nova de Foz Côa, onde, nos últimos anos, após ali ter descoberto, em 2002, vários alinhamentos pré-históricos, com os equinócios e solstícios, tenho sido o responsável pela coordenação de vários eventos culturais. Sou jornalista (da ex-Rádio Comercial RDP), tendo vivido vários anos em São Tomé – ilha onde desembarquei, em Novembro de 1963, para um estágio, na Roça Uba-Budo, da Companhia Agrícola Ultramarina, do meu curso de Agente Rural, da Escola Agrícola de Santo Tirso. Várias foram as profissões que aqui exerci, até os primeiros passos do jornalismo, assim como também muitas foram as vicissitudes, bem como os dias mais felizes da minha vida, aqui vividos, entre aquela distante data e Outubro de 1975, cujas histórias dariam talvez matéria para alguns livros. Mas ficará para ocasião oportuna.



O objetivo desta exposição é associar-me ao espírito das comemorações do 40.º aniversário da Independência de São Tomé e Príncipe; mostrar à população destas encantadoras ilhas, às generosas e pacíficas gentes deste jovem país, das quais tenho as mais gratas recordações, um conjunto de várias fotografias, artigos, excertos do meu diário de bordo, entre outros documentos, das minhas aventuras marítimas e da escalada do Pico Cão Grande, com a colaboração de uma corajosa equipa de santomenses. Espólio que, no termo da exposição, gostaria de doar ao Museu Nacional de São Tomé e Príncipe.

                    “Contar-te longamente as perigosas
                      Cousas do mar, que os homens não entendem,
                       Súbitas trovoadas temerosas,
                       Relâmpagos que o ar em fogo acedem,
                       Negros chuveiros, noites tenebrosas,
                       Bramidos de trovões que o mundo fendem,
                       Não menos é trabalhos que grande erro,
                        Ainda que tivesse a voz de ferro.”

                                      Camões

Em resumo, direi que sou autor de várias travessias em pequenas pirogas primitivas, nos mares do Golfo da Guiné, por força de muitos treinos, sempre que me era possível, de praia em praia, nas frágeis canoas dos corajosos pescadores de São Tomé, aos quais desejo aqui expressar um abraço de reconhecimento e de admiração, não apenas pela dureza e risco das suas vidas, em que se expõem, sempre que partem para o mar, como também pelos ensinamentos que me prestaram, já que foram eles os meus melhores mestres.

Depois de me sentir suficientemente preparado, que simplesmente a empreender as habituais saídas de canoa, na praia Maria Emília ou ir até à Fortaleza S. Jerónimo, na piroga que ali comparara a um velho pescador por 200$00, decidi fazer um teste um pouco mais ousado, indo de canoa desde a Baía Ana de Chaves até à praia de Anambô. Este é o local onde se encontra o padrão que assinala a chegada dos primeiros navegadores portugueses, justamente no ano em que se realizavam as comemorações do V centenário do seu desembarque, em destemidas e frágeis caravelas, filhos de um pequeno país, mas que, graças à sua notável valentia, à grande gesta destes e de outros navegadores portugueses, haveriam de mudar a história e a geografia do mundo, em admiráveis epopeias marítimas, cantadas nos épicos versos de Luís de Camões, corajosas façanhas que muito admiro, contrariamente a vários aspetos da colonização, cuja dura realidade também a senti no corpo e no espírito. A viagem de ida e volta, foi bem sucedida, não me oferecendo grandes dificuldades, concluindo que estava habilitado a outros desafios mais arriscados.

Um mês depois, aí estava eu, tal como aqueles intrépidos navegadores, e à semelhança dos arrojados pescadores destas maravilhosas ilhas, quando o tornado os arrasta para o desconhecido, a desafiar a vastidão do mar, num simples madeiro de ocá escavado.

Larguei à meia-noite, clandestinamente, pois sabia que se pedisse autorização esta me seria recusada, dada a perigosidade da viagem, levando comigo apenas uma rudimentar bússola para me orientar. No regresso de avião a São Tomé, fui preso pela PIDE, por suspeita de me querer ir juntar ao movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, no Gabão, o que não era o caso. Levei três dias e enfrentei dois tornados. À segunda noite adormeci e voltei-me com a canoa em pleno alto mar. Esta era minúscula e vivi um verdadeiro drama para me salvar, debatendo-me como extrema dificuldade no meio do sorvedouro denegrido das águas.

Cinco anos depois, numa piroga um pouco maior, fiz a ligação de São Tomé à Nigéria. Uma vez mais parti sem dar a conhecer os meus propósitos, ao começo da noite, servindo-me apenas de uma simples bússola. Ao cabo de 13 dias chegava a uma praia ao sul deste país africano, tendo sido detido durante 17 dias por suspeita de espionagem, após o que fui repatriado para Portugal. Os jornais nigerianos destacaram em primeira página o feito.


Os objetivos destas travessias visavam demonstrar a possibilidade de antigos povos africanos terem povoado as ilhas, situadas no Golfo da Guiné, muito antes dos outros navegadores ali terem chegado, contrariamente ao que defendem as teses coloniais, que dizem que as ilhas estavam completamente desabitadas. E a verdade é que, entretanto, já foram encontradas antigas cartas em arquivos, com nomes árabes que testemunham esses contactos. Contributos esses que, de modo algum, poderão pôr em causa o mérito dos ousados feitos dos navegadores portugueses.

Regressado a São Tomé, ainda no mesmo ano, e já com São Tomé e Príncipe independente, tentei empreender a travessia ao Brasil, com o propósito de reforçar a minha tese, evocar a rota da escravatura através da grande corrente equatorial e contribuir para a moralização de futuros náufragos, à semelhança de Alan Bombard. Segundo este investigador e navegador solitário, a maioria das vítimas morre por inação, mais por perda de confiança e desespero, do que propriamente por falta de recursos, que o próprio mar pode oferecer. Era justamente o que eu também pretendia demonstrar. Navegando num meio tão primitivo e precário, levando apenas alimentos para uma parte do percurso e servindo-me, unicamente, de uma simples bússola, sem qualquer meio de comunicar com o exterior, tinha, pois, como intenção, colocar-me nas mesmas condições que muitos milhares de seres humanos que, todos os anos, ficam completamente desprotegidos e entregues a si próprios. Porém, quis o destino que fosse mesmo esta a situação que acabasse por viver. 

A canoa foi carregada num pesqueiro americano para ser largada, na corrente equatorial, um pouco a sul de Ano Bom. Porém, à chegada a esta ilha, o comandante propôs-me abandonar a canoa e ficar a trabalhar a bordo, alegando que a mesma estorvava e que a aventura era muito arriscada. Na impossibilidade de ser levado para a dita corrente, decidi-me pelo regresso a São Tomé para tentar a viagem noutra oportunidade. Foi então que uma violenta tempestade me surpreendeu em plena noite, tendo perdido a maior parte dos víveres, os remos e outros apetrechos. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é difícil imaginar pior situação. Mesmo assim, com a canoa completamente desgovernada, não cruzei os braços e nunca me dei por vencido. Peguei num dos mastros e coloquei-o de través para garantir algum equilíbrio. Um dos bidões foi amarrado a uma corda e largado para servir de âncora flutuante. No dia seguinte improvisei um remo com um dos barrotes do estrado da canoa e pedaços da cobertura, a fim de conseguir dar alguma orientação. Mas de pouco me haveria de valer face à fúria dos constantes tornados. Como bóia de salvação utilizei o resto do estrado e adaptei-lhe um pequeno colchão de ar; frágil recurso para forças tão descomunais!




Ó Deus Omnipotente e Salvador!... Ó JESUS CRISTO!...Ó BELO E MAGNÍFICO EXEMPLO SENHOR MEU!... Que maior tormento e suplício aquele!... Deitado no duro fundo daquele inconstante, encharcado, tosco e frágil madeiro escavado!… Porém, mesmo assim, quão doce e infinito era aquele meu tormento!... Quantas vezes, me lembrei da tua cruz e do teu calvário!... Quando já estavas prostrado e rendido às leis da morte e da vida para te lançarem estendido ao sepulcro!.. Quantas!... Quantas vezes!... Quando tudo à minha volta me parecia revolto e perdido… Sim, no meio avassalador daquelas espessas trevas e noites de breu, cercado pelo tumulto escuro do mar e do céu! E, ante a imensa e tenebrosa solidão, apenas se me afigurava vislumbrar o perfil do teu piedoso rosto… Embora triste e macilento, banhado de suor e de lágrimas!... Mas coroado de esplendorosa caridade e de compaixão… por aqueles mesmos que te traíram e não compreenderam a tua humana, divina e nobre missão! Mas aos quais a áurea que iluminava a tua face, me parecia resplandecer apenas emanada por um infinito sentimento de amor e perdão…

Na verdade, há momentos que, por tão tormentosos e solitários na vasta imensidão oceânica,  são verdadeiras eternidades – Que o digam todos aqueles que passaram pela dramática e dificílima situação de náufragos. Outros, nunca o terão podido expressar, visto terem ficado sepultados para sempre no silêncio eterno do fundo dos  abismos submarinos. Pessoalmente, quis Deus ou o destino que fosse um dos  sobreviventes, de entre os milhares de vitimas, que, por esta ou por aquela razão,  anualmente, são tragados pela voragem dos oceanos e  pudesse transmitir o testemunho daquilo  que o engenho, a força de vontade e o querer humano, poderão lograr, face às maiores provações.

Sim, no meu caso,  muitos foram os momentos de extrema aflição, que me pareceram verdadeiras eternidades, especialmente durante os longos e difíceis 38 dias, enfrentando tempestades, sucessivas, o doloroso sofrimento da incerteza e da fome, o suplício da  sede, com tanta água à minha volta e, por vezes, mesmo bebendo-a, não podendo matar a sede, além de constantes e quase mortíferos ataques de tubarões – porém, de todas as memórias que perduram – e estou certo que perdurarão para o resto da minha vida – o que mais me apraz registar – em todo o imenso somatório das minhas vicissitudes,  é o espírito de  determinação, de coragem e de uma infinita paciência,  o de, nunca, em momento algum, me ter resignado ao extremo abandono e solidão, de lutar, de jamais me ter rendido a  cruzar os braços, face às imensas dificuldades, mas o firme e constante propósito de as poder superar.

Acabei por ser arrastado pelas correntes até à Ilha de Fernando Pó, já no limiar da minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e preso numa cela de alta segurança, a mando do então Presidente Macias Nguema, após o que fui repatriado para Portugal, tal como me acontecera na Nigéria. Mas, agora, graças a uma pequena mensagem que levava do então jovem Governo de São Tomé e Príncipe, que recentemente tinha ascendido à sua independência, para saudar o povo irmão brasileiro, quando eu aportasse na sua costa.

registada com a máquina fixada no mastro, disparada com pau
Os objetivos dessas minhas travessias foram vários: antes de mais, o fascínio que o mar exerceu em mim desde o primeiro dia que desembarquei, do velho Uíje, ao largo da baía azulinha da linda cidade de São Tomé; o desejo de me encontrar a sós com a solidão e a vastidão do oceano e, de perante esse cenário, me poder interrogar, ainda mais de perto, sobre a presença e os mistérios de Deus. Mas também por outras razões de carácter histórico-científico e humanitário, tais como evocar a rota da escravatura, ao longo da grande corrente equatorial, lembrar esses ignominiosos tempos do comércio de escravos e chamar atenção para esse grave problema que, sob as mais diversas formas, continua afetar a existência muitos seres humanos na atualidade. Mais, demonstrar a possibilidade de antigos povos africanos terem povoado as ilhas, situadas naquele imenso Golfo, muito antes dos navegadores portugueses ali terem chegado. Por último, contribuir para a moralização de futuros náufragos. Felizmente quis a minha boa estrelinha e, creio, com ajuda de Deus, que pudesse resistir a tantos dias de angústia, de sobressaltos e de incerteza.

Já se passaram vários anos, porém essa minha experiência ainda está muito presente na minha memória. E duvido que algum náufrago possa alguma vez esquecer os seus longos momentos de abandono e de infortúnio.

Jorge Trabulo Marques


São Tomé



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