Algures no Golfo da Guiné, 23 de Novembro de 1975 - Há 50 anos - Na sequência de tentar atravessar o Oceano Atlântico, numa piroga santomense, pela rota da escravatura, lembrando os ignominiosos tempos do tráfico de escravos, em que as Ilhas de São Tomé e Príncipe, serviam de interposto desse hediondo e desumano mercado .
O diário neste dia foi parco de palavras: mais de silêncio de que de narrativa: ainda não me sentia rendido à solitária fatalidade, que parecia estender-se por um imenso manto líquido em torno de mim, mas as energias anímicas iam realmente fraquejando.
Algures no Golfo da Guiné, 23 de Novembro de 1975 - Há 50 anos - Jorge Trabulo Marques -
| Navegando com a pequena vela de tempo |
Estou muito fraco. Mal me posso levantar: tenho-me limitado às tarefas mais indispensáveis. A pôr a roupa a secar e a despejar a água que se acumula no fundo da canoa. Mas tudo isto é exaustivo!.. Exige-me um inaudito esforço e eu estou muito fraco!.. . Disponho apenas de uns três ou quatro anzóis. Mas não tenho iscas; não vale a pena lançar a linha e o anzol. .
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| Travessia Nigéria S.Tomé - 12 dias - Março 1975 |
Muitas vezes, prostro-me de joelhos junto à borda de canoa para ver se apanho algum peixe à mão. Há sempre peixes de todos os tamanhos à volta da canoa e acompanhá-la. Alguns vêm à cata das lapas que nascem no costado. Mas quando estendo o braço para os apanhar, escapam-se-me; são mais rápidos de que eu! Mais das vezes acabo por desistir e deito-me no fundo da canoa para poupar as minhas forças – Pois, mesmo atolado numa autêntica salmoura, tenho necessidade de descansar. Nem que fosse sobre um tapete de pregos. - Até porque não consegui dormir em toda a noite.
Diário vertido para um pequeno gravador, guardado num velho contentor do lixo
A bem dizer, a morte é a minha companheira de todas as horas. Convivo, lado a lado com a sua vertigem, seja atraente ou aterradora, vagueio à superfície do abismo da sua imensa sepultura. A qualquer instante poderei desaparecer e quase sem dar por isso. Basta que os dedos engalfinhados das suas poderosas mãos, que a noite cobre com golas rendadas e franjadas de luto, me surpreendam a dormir ou até em qualquer instante da minha penosa vigília. Mas, se tiver de morrer, se for chegada a minha hora, paciência!... Também não é caso para desesperar. Antes de me meter nesta aventura, equacionei todas as hipóteses: de viver e de morrer. Estou preparado para tudo; para o que o der e vier. - Só desejo que ao menos me acolha no seu leito, como um dos bravos, dos que não lhe viram a cara e lhe dão luta, e, sendo assim, só lhe peço que ao menos seja um pouco mais complacente e me livre da terrível agonia dos miseráveis afogados que impiedosamente já sufocou e tragou nestes mesmos mares.
Mais a mais, se eu partir para o lado de lá, ninguém vai saber como e quando a morte me chamou. Ninguém vai ter de cavar a minha sepultura, pois tenho-a, aqui ao meu lado, sempre aberta. Não, não posso receá-la... Pois haverá maior solidão do que aquela que agora que me envolve?!...Do que aquela em que estou profundamente mergulhado?!... Haverá maior martírio do que aquele que eu vivo nestas horas, dolorosamente incertas e infinitas? Que me arrastam, não sei para que confins desta imensa e tumultuosa negridão!
A morte?!... Como posso eu temer a sombra da minha própria sombra se nem sequer a enxergo?... Que diferença fará a minha triste figura das sombras soltas, do confuso tumulto que campeia à superfície da conturbada planura que a espessa noite impele, transfigura e oculta?!... Noite sobre a qual vogo e ninguém me distingue e nem eu vejo o fundo do madeiro que piso!... Que contraste haverá de mim e das trevas que ondulam por toda a parte e têm como coberto o negrume de um espesso e pesado céu?!...Oh, sim!. Haverá maior solidão do que aquela que povoa o meu coração de mil sobressaltos, angústias e de incertezas?!... Sim, que me confunde e esmaga sob o teto da mesma assombrosa atmosfera em que vagueio, sem rumo e pedido!..
Oh, como posso eu virar as costas à Soberana Morte, se ela me chamar?!... Até porque, se o mar me levar, meu corpo, nunca ficará tão sozinho como agora se encontra....Há uma cova continuamente aberta, que já recebeu milhões de vidas e não se importa de continuar a receber ainda muitas mais vidas! - Que foi a sepultura dos milhares de escravos que, nestes mesmos mares, agonizaram horrivelmente, nos escuros porões dos barcos negreiros ou foram atirados vivos para o tumulto das ondas!.. A morte quando bate a porta, não distingue o escravo do escravizador, do pobre do rico. Levou corsários e piratas, criminosos algozes, sem escrúpulos, que não chegaram a ser mais valentes com as tempestades de que com as suas vítimas. Não poupou e não se condoeu de corajosos e intrépidos pescadores, pilotos e marinheiros. Oh quantas vidas, por aqui já não terão parecido, na vastidão do "Grandíssimo Golfo", nestes mesmíssimos mares de outrora, do passado e do presente!... Mares eternos" Mares de sempre! Mares de inesperados tornados e perigosos tubarões!
Na verdade, já lá vão algumas horas depois que o sol se pôs, e eu continuo sem me poder deitar. Sinto-me exausto e possuído por um desejo irresistível de dormir. Estou para aqui enrodilhado como um miserável trapo. Abrigado debaixo de um toldo para me defender dos espirros das ondas, porém, do que eu não consigo proteger-me e defender-me, é da água que entra através da rachas. Há a que aflora pelo sítio onde assenta o mastro e também ainda a que atravessa as rachas que estão acima da linha das águas. Só que, acima dos 40 cm submersos, os 20 cm que restam, é muito pouco. Entra lentamente mas, como não pára de entrar, vai-se avolumando. E eu não disponho de bombas para a escoar; tenho que o fazer eu com o balde ou com a espátula.
Está a molinhar. Vejo relâmpagos a rasgar o negrume das distâncias. Com o barulho das ondas ainda não ouvi o trovão, mas não deve tardar a fazer soar por aí a sua orquestra. Meu Deus!...Este mar não me dá tréguas nem descanso!.. Pelo que vejo, espera-me um resto de noite, ainda mais confuso e atribulado. Uma noite, açoitada por um vento furioso, que parece não se acalmar.
Diário de Bordo 1 É já o fim de tarde do 34º dia. Mais um dia que passei... praticamente deitado sobre o fundo da canoa... Com os braços cruzados, pois não tenho outra solução.... O mar continua com bastante ressaca... O vento agora não é muito forte.... Mas a única solução que tenho é realmente deitar-me no fundo da canoa, até para não gastar energias... Para não fazer muito esforço físico.
Não tenho comida... Sinto uma grande dureza no estômago... Uma grande dor nas costas!... Todo o meu corpo me dói... Há uma fraqueza geral em mim...
De manhã, vi muito ao longe a chaminé de um barco....mas bastante afastado! O mar contínua muito bravo!... O equilíbrio é realmente difícil...
Estou apenas com três comprimidos e água das chuvas... Mais nada no estômago... Tenho um apetite voraz...Neste momento eu comia não sei o quê!...
Um pormenor importante que notei é apenas da água... que têm uma cor esverdeada... Mais escura de que o habitual....Agora as correntes mudaram de direção. Estou sendo arrastado para sul... Agora já não é de oeste para este...
A morte?!... Como posso eu temer a sombra da minha própria sombra se nem sequer a enxergo?... Que diferença fará a minha triste figura das sombras soltas, do confuso tumulto que campeia à superfície da conturbada planura que a espessa noite impele, transfigura e oculta?!... Noite sobre a qual vogo e ninguém me distingue e nem eu vejo o fundo do madeiro que piso!... Que contraste haverá de mim e das trevas que ondulam por toda a parte e têm como coberto o negrume de um espesso e pesado céu?!...Oh, sim!. Haverá maior solidão do que aquela que povoa o meu coração de mil sobressaltos, angústias e de incertezas?!... Sim, que me confunde e esmaga sob o teto da mesma assombrosa atmosfera em que vagueio, sem rumo e pedido!..
Oh, como posso eu virar as costas à Soberana Morte, se ela me chamar?!... Até porque, se o mar me levar, meu corpo, nunca ficará tão sozinho como agora se encontra....Há uma cova continuamente aberta, que já recebeu milhões de vidas e não se importa de continuar a receber ainda muitas mais vidas! - Que foi a sepultura dos milhares de escravos que, nestes mesmos mares, agonizaram horrivelmente, nos escuros porões dos barcos negreiros ou foram atirados vivos para o tumulto das ondas!.. A morte quando bate a porta, não distingue o escravo do escravizador, do pobre do rico. Levou corsários e piratas, criminosos algozes, sem escrúpulos, que não chegaram a ser mais valentes com as tempestades de que com as suas vítimas. Não poupou e não se condoeu de corajosos e intrépidos pescadores, pilotos e marinheiros. Oh quantas vidas, por aqui já não terão parecido, na vastidão do "Grandíssimo Golfo", nestes mesmíssimos mares de outrora, do passado e do presente!... Mares eternos" Mares de sempre! Mares de inesperados tornados e perigosos tubarões!
Na verdade, já lá vão algumas horas depois que o sol se pôs, e eu continuo sem me poder deitar. Sinto-me exausto e possuído por um desejo irresistível de dormir. Estou para aqui enrodilhado como um miserável trapo. Abrigado debaixo de um toldo para me defender dos espirros das ondas, porém, do que eu não consigo proteger-me e defender-me, é da água que entra através da rachas. Há a que aflora pelo sítio onde assenta o mastro e também ainda a que atravessa as rachas que estão acima da linha das águas. Só que, acima dos 40 cm submersos, os 20 cm que restam, é muito pouco. Entra lentamente mas, como não pára de entrar, vai-se avolumando. E eu não disponho de bombas para a escoar; tenho que o fazer eu com o balde ou com a espátula. Apetecia-me estender ao comprido, pois é assim que eu faço nas noites mais serenas, e quando não chove, tal como são estendidos os cadáveres nos caixões - Sim, esta canoa é um caixão flutuante. Não é feito de várias tábuas mas num só madeiro. Mas estou a ver que não vou conseguir. Sofre constantes balanços. As ondas estalam no costado com fortes chicotadas. Por mais que escoe a água, o fundo continua num autêntico charco. De volta e meia, lá tenho eu de me ajoelhar para a escoar e espreitar o ambiente lá fora. E é o que vou fazer agora. Não deve faltar muito para a meia-noite. Mesmo sem horas, sinto o seu peso. E de noite já reajo às mesmas horas, como um autómato. Não para verter a água que faz da canoa uma banheira, pois só a baldeio quando me cobre as costas - E agora não estou deitado, mas quero saber como tempo está lá fora.
Está a molinhar. Vejo relâmpagos a rasgar o negrume das distâncias. Com o barulho das ondas ainda não ouvi o trovão, mas não deve tardar a fazer soar por aí a sua orquestra. Meu Deus!...Este mar não me dá tréguas nem descanso!.. Pelo que vejo, espera-me um resto de noite, ainda mais confuso e atribulado. Uma noite, açoitada por um vento furioso, que parece não se acalmar.
Vejo as habituais manchas luminescentes, aqui e além no ondulado negro das ondas, brilhos confusos e terríficos, vindos de mil direções, e certamente também das profundezas, que refulgem, que reluzem e tremeluzem de onde em onde. Que aparecem e desaparecem. São as manchas do plâncton e certamente da fauna marinha das profundidades que o persegue às horas mais escuras e sinistras, que aflora à superfície.
Quando fiz a travessia de São ao Príncipe é que eu fiquei arrepiado. Era simplesmente pavoroso ver as ondas em vez de a branquear de espumas, vê-las franjadas de lume. Com explosões que faziam lembrar um mar em chamas. Até a pá do remo parecia sair de um mar a arder. Ou saída da corrente do magma de um vulcão explodindo e cuspindo a sua lava. Estas imagens são muito comuns nos mares tropicais. Agora já estou habituado a esses estranhos brilhos. Não é isto que me assusta ou preocupa. Mas a chuva que apanho no corpo e as tempestades noturnas que só vêm dificultar ainda mais a minha segurança e sobrevivência.



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