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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Herberto Hélder, em Angola, “Sob o signo dos Peixes” com os pescadores dos dongos – “- O repórter da “Notícia” que já era poeta – Em 1971, dizia que a “literatura é a mais corrosiva das lepras jornalísticas” – Mas “de repente é pura poesia o que acontece. Uma daquelas toadas de trabalho que tantas vezes lêramos nas antologias surge ali mesmo, sem que se destine a surpreender ou agradar o turista”


Jorge trabulo Marques -  Jornalista  -  O lado menos conhecido do poeta - Do repórter que foi e de que não há registos destes seus trabalhos em antologias ou na  Internet - Herberto Hélder, em Angola, “Sob o signo dos Peixes” com os pescadores dos dongos da baía de Luanda -  Repescado por  Jorge Trabulo Marques - jornalista - Caso faça uso de algum texto, não se esqueça de  citar a fonte - Pois foram  horas gastas na transcrição - linha a  linha - neste trabalho. - Além da composição.

Dizia Herberto Hélder: - “Houve uma vez um senhor chamado Morávia , autor de romances e de ensaios. Também escrevia reportagens Há quem diga que sabia dos ofícios. Esse senhor reivindicava para as suas crónicas um estilo implacavelmente narrativo e directo, conforme convinha à própria dignidade dos acontecimentos. A secura seria o seu privilégio- Também era preciso sabê-lo ler. Sabia-se, e com isso ganhavam os jornais e os leitores que, por acaso, o que queriam era compreender. Pois foi assim que Morávia começou a sua crónica sobre o evento mais sensacional do ano: «Os· americanos aterraram, hoje  às tantas horas, na superfície da lua» Por muito que se não .credite, o repórter não citava qualquer poeta.

Julgo - também - que a literatura é a mais corrosiva das lepras  jornalísticas. E querida dos frustrados que naufragaram nas redacções da imprensa generosa.” Herberto Hélder - 1971


Vale a pena a leitura desta reportagem do poeta Herberto Hélder, que recentemente nos deixou  – Pelos vistos, vem confirmar que, a iniciação à escrita através do jornalismo,  senão é uma boa tarimba (neste caso, mal chegou a ser, tão efémera foi a sua passagem) pelo menos pode ser um bom pronúncio para outros voos literários, ainda mais elevados, tal como foram de tantos outros famosos poetas e escritores  – E, Herberto, já demonstrava, claramente:  que nele havia mais de que dotes jornalísticos.

VI LOGO QUE HAVIA NA SUA ESCRITA ALGO MAIS QUE O REPÓRTER  FACTUAL –  POESIA E INQUIETUDE E FILOSOFIA.

A primeira vez que me apercebi, de que o então repórter, Herberto Hélder, era  algo mais que o vulgar jornalista,  de que o  mero enviado a fazer uma reportagem sobre os pescadores da baía de Luanda (assunto que me tocava particularmente, dada a minha estreita ligação que mantinha com os pescadores santomenses e as suas pirogas),  sim, mas que também havia nele o talento e a subtileza de um remanescente  poeta e filósofo, foi quando li na revista Notícia, uma reportagem com este título: SOB O SIGNO DOS PEIXES 
Entre os perigos de uma despersonalização do trabalho humano pelas exigências tecnocráticas e as insuficiências do labor artesanal, a aspiração é a mesma: o prazer de estar no mundo” – Lide  da REPORTAGEM DE HERBERTO HÉLDER // FOTOS DE JOAQUIM CABRAL  - Cujo conteúdo tomo a liberdade de transcrever integralmente, mais à frente, à exceção das fotos, que irei ilustrar  com algumas minhas e com  outras antigas,  que fui buscar à Internet,  dada a deficiente qualidade das copias onde pude consultar o  exemplar  da citada revista. 

Na verdade, depois que li,  essa quanto ousada como excelente reportagem, nunca mais me esqueci do seu nome. Infelizmente, um grave acidente, no carro onde era conduzido para uma reportagem, ao serviço daquela extinta revista semanal, tornaria   efémera a sua colaboração de redator e repórter. 

 HOMENAGEM PRESTADA PELO AUTOR DESTE SITE - NOS TEMPLOS SO SOL, O ANO PASSADO NO EQUINÓCIO DA PRIMAVERA - A Herberto Hélder e Friedrich Hölderlin



 SOB O SIGNO DOS PEIXES

"Alguns caranguejos, algum peixe miúdo. Coisa de pobre. que nem dá para negócio. O esforço dos músculos obedece  ao ritmo de uma toada onde surge a mais viva poesia. O negócio procura-se  como um jogo cuja coluna vertebral é uma surpreendente honestidade"

ALGUNS nostálgicos da literatura optariam por uma de três ou  quatro maneiras, suspeitas  de mostrarem estilo, para começar uma crónica sobre pescadores. Fariam  talvez uma incursão pelas éclogas  ditas piscatórias: não ficaria mal de todo uma citaçãozinha de Bocage, por exemplo. Ou – quem sabe? - falariam da emblemática cristã lo Peixe, dizendo que, historicamente, ela se deveria a terem sido pescadores os primeiros apóstolos. À margem, comentariam o valor iniciático dos símbolos. Porque o título se prestaria, lançar-se-iam, porventura, na exegese astrológica, e teríamos: os Peixes são um signo animal, duplo e de água. 

Qualquer  das hipóteses abriria campo para uma retórica dramatizante do quotidiano, sobre a pompa cultural. Podia pôr-se  por cima e pelos lados um esvoaçar lírico  de evocações e inovações. Para servir quente. 

E uma receita destinada a quem não possui muitos respeitos pelos simples factos que, em sí mesmos, na sua objectividade, contém a carga dramática que nenhuma literatura lhes proporcionará. 

Houve uma vez um senhor chamado Morávia , autor de romances e de ensaios. Também escrevia reportagens Há quem diga que sabia dos ofícios. Esse senhor reivindicava para as suas crónicas um estilo implacavelmente narrativo e directo, conforme convinha à própria. dignidade dos acontecimentos. A secura seria o seu privilégio- Também era preciso sabê-lo ler. Sabia-se, e com isso ganhavam os jornais e os leitores que, por acaso, o que queriam era compreender. Pois foi assim que Morávia começou a sua crónica sobre o evento mais sensacional do ano: «Os· americanos aterraram, hoje  às tantas horas, na superfície da lua» Por muito que se não .credite, o repórter não citava qualquer poeta.

Julgo - também - que a literatura é a mais corrosiva das lepras  jornalísticas. E querida dos frustrados que naufragaram nas redacções da imprensa generosa. 

«Vê como eles não têm pressa» - disse-me um amigo, apontando para três ou quatro dongos que vagarosamente passavam pela bala, ora a vau, ora a remo descansado. Observação  atirada um pouco· ao ar, mas onde se revelava o espírito que anima o artesanato, em oposição às velocidades industrias. Esse vagar - o valor da ligação íntima do corpo do homem  à tarefa ou à obra - dá ao trabalho artesanal (que inevitavelmente acabará por ser devorado pela produção serial) um encanto, um pitoresco, e mesmo um sentido religioso e ritual, que fascinarão uma nossa sensibilidade ao  que é natural e vivo.

Por outro lado, algures, no extremo da festa tecnocrática, começa-se a contestar  uma certa moral de trabalho despersonalizado e do ganho , e vê-se que, com as suas produções em bruto, o homem não é mais feliz. Contudo, há alguma coisa a dizer acerca da felicidade dos que andam vagarosamente pelas baias.  É que também não são felizes. Na verdade, labutam duramente e vivem mal. 

A respeito deste conflito da técnica e do artesanato, e da realização do mais fundo desejo do homem - a alegria de viver - propôs alguém uma generosa e bela utopia. O homem é um ser lúdico e erótico mas necessita de sobreviver, e não se deve considerar um mal tudo o que a técnica lhe tem oferecido. Um dia a máquina produzirá em seu favor, e o homem,  liberto da velha sujeição e da moral sobre ela instituída, poderá criar, em termos concretos, a nunca relegada aspiração - a Idade de Ouro. No jogo e no erotismo encontraria ele a sua legítima expressão vocacional

Não é talvez isto um sonho ligeiro, mas ligeireza será decerto ter hoje por felicidade a vida arcaica dos pescadores que nos seus dongos cruzam a baía (com um ritmo e uma estranha graça rituais. desalojados dos fundos do tempo). O encantamento que acordam em nós subtrai a consideração  de uma existência penosa. 

Já algumas vezes os víramos, de noite, estendidos na areia da Ilha. Enquanto as redes esperavam o peixe, eles dormiam.  Voltariam depois ao mar, para levantá-las. Esta pesca. artesanal, decerto menos produtiva e rendosa do que a praticada pelas traineiras, apetrechadas já com radar e dispositivos para recolha das redes, ainda se faz em escala considerável em Luanda. Julgamos que também noutros pontos do litoral angolano. No entanto, como verificámos, algumas alterações têm vindo a ser incluídas no apetrechamento. Há quem tivesse substituído o dongo, embarcação parente da piroga, por barcos semelhantes aos dos pescadores metropolitanos - chatas mais estáveis e eficazes. Nalgumas delas instalaram-se mesmo motores. 

Os amadores de pitoresco estão alarmados, mas os pescadores com quem conversámos confessam-se satisfeitos-; com as inovações. Dizem que pescam mais e com menor esforço. Não lamentamos, com certeza a decepção dos coleccionadores de imagens folclóricas, mas inquieta-nos  (..) não apenas o que diz respeito aos pescadores da baía de Luanda, evidentemente que o trabalho humano esteja a perder a sua qualidade de acto existencial , de jogo e rito para transformar-se num pesadelo de onde se exclui todo o prazer  de uma inserção natural  no mundo.  Este problema, por uma parte, e a melhoria que o labor mais racionalmente organizado traz  ao ser humano, por outra  - levantam na ponderação de cada um embaraços  que se não resolvem   facilmente. Talvez seja mesmo o tal utopista  e único a favorecer-nos alguma esperança.

Não é este, entretanto, o tema escolhido para a nossa reportagem. Desejamos marcar apenas não ser o pitoresco o que nos atrai, e temos em conta  os prejuízos  que a técnica introduziu no espírito do trabalho e nos hábitos humanos em geral. 

Ei-los à nossa frente – os dongos sem poemas, ou as chatas que, embora mais evoluídas, não o são tanto que a pressa as distancie. A lentidão do espectáculo move-nos a quase a aceitar um estilo deambulatório, espraiado, curvo que nos repugna em jornalismo. Queríamos introduzir  aqui uma trepidação de imagens frontais e as vivacidades de um diálogo que não há. 


Este mundo revela docemente para a imobilidade. Podia fazer-se um quadro. Nunca mais deixa de ser pela e meia da tarde , e os três homens que se preparam para meter a chata ao mar estão ali desde sempre. Têm uma falsa desatenção, um remanso oblíquo de respostas, a desconfiança sorna e sagaz dos pobres. Estamos a desejar-lhe boa sorte mas não é isso coisa que se diga. Tudo o impede o pudor , o sentido do ridículo e o adivinhar que eles conhecem das palavras um lado que nós ignoramos. O lado que se poupa . De qualquer maneira, com votos de boa sorte ou sem eles terão estes homens a sua sorte, que nunca poderá ser muita. Diante de coisas tão reais , os votos da convenção moram  do lado das palavras inúteis. E aqui fica pendorada a litografia de umas seis horas  e meia da tarde inconsumíveis. 

«Às oito a gente vorta. A gente vai deitar as redes”

Parece um milagre que esta voz que aparece inesperada, mente. Alguém diz que vai chover, e a mesma voz canta.

«Pescador não tem medo de chuva. Só tem medo de tempestade»

Às oito estão realmente de volta. E enquanto os peixes vão caindo  na cilada das redes estendidas, os homens dormem na praia, embrulhados nos seus panos  ou debaixo dos casinhotos de estacas e folhas de palmeiras . Joga tudo certo: a malícia das redes, o sono dos pescadores, as horas que se somam pacientemente. O dia abrirá, os homens partirão de novo, agora para levantar as redes – e isso como vagares e subtilezas. 

Passa da sete da manhã quando o barco dá em seco. Considera-se misterioso por enquanto saber  se a pescaria foi farta ou não. Sinais, nenhuns. Gente impenetrável, esta. A mesma deslizante destreza com que saltaram para dentro do barco, têm-na agora ao saltar para a água. 

Vindos não se vê bem donde, chegam os primeiros compradores. Algumas mulheres e rapariguinhas, um motociclista, um senhor lépido, uma dona de casa investigadora.  -
«Tá-tá. Rrrrrr. Ula.
Ula
Vai vai.
Vai.
Cima, cima
Cima.
Puxa, puxa.
Puxa
Sobe. Sobe.
Sobe.
Tá-tá. Rrrrrrr. Ula
Ula»

Quando o barco já está sem seco e enquanto dois dos homens  estendem as redes na praia , para secarem, um dos outros vai dar  um mergulho. Tudo isto é inevitavelmente belo e grande: Compreenda-se: não é o pitoresco o que nos comove, mas a verdade de cada pequena coisa que sucede. Nada existe aqui que não seja rigoroso  e importante. Nunca percebi  bem como o espírito pode estar presente nos actos simples, e como o mais simples. acto  pode possuir uma tão completa dignidade 

Os fregueses esperam  ainda o vagar com que se separam as espécies de peixes. Tubarões pequenos a um lado (foi o que mala ee apanhou), linguados noutros, corvinas, raias, um peixe-agulha, duas santolas ainda agarradas à rede e mexendo  aa patas cegamente. ' .
« Quanto?» -pergunta uma mulher, com um grande pargo na mão.
«Não é   pra vender»
«Quanto?» - e outra aponta para uma corvina,.
«Sete escudos».
«É prá quitandeira».
«Dois mil e quinhentos»
Quitandeira vai pelas ruas da cidade vendendo o peixe em baldes de plástico, baldes que na sua cabeça perdem a vileza dos  objectos estereotipados  para ganharem um prestigio imprevisto, de vaso antigo. ·
Quanto a mim. Ignorava que se comesse tubarão. Estou a dizê-lo com ingenuidade, mas parece que essa ingenuidade é tida por ridícula, pois  Informam-me naturalmente:
«Filete, sim»

 De vez em quando, o cerrado jogo do negócio, que se adivinha cheio de pequenas  e imperceptíveis regras,  de caladas colisões de interesses, de concessões ou de exigências  ambíguas, estala como uma exclamação  cantada
«Vai, vai»
E o peixe acaba por Ir. Exemplar a exemplar, sopesado, recusado, recuperado - o peixe vai. Quase vazio o barco, não deixam os homens de mexer aqui e ali, sempre ponderado e lentos, metendo e tirando debaixo das tábuas, amarrando e desamarrando. Explicam que já não querem pescar em dongos, pois as chatas são mais seguras. Juntam-se três, quatro ou mais e mandam construir uma chata. O propósito  é trabalharem por conta própria. Patrão, não. A quem não daria isso prazer? Mas é tudo assim tão simples? Simples, nem tanto. É preciso pagar às autoridades marítimas  pelo direito de posse e uso do barco. Calcula-se a importância com base nas suas dimensões.

«Daqui até aqui e daqui até aqui»
E Indicam o comprimento  e a largura da embarcação
«Também as redes paga»

Quanto ao processo de venda do peixe, adoptam, -conforme as oportunidades e os interesses de circunstância, uma de duas modalidades: ou firmam contrato (oral) com um negociante, a quem cedem· todo o pescado ou a maior parte dele, reservando então para as quitandeiras a sobra. Ou optam pela modalidade a que assistimos: vendem a quem quiser comprar, fazendo um preço especial para a revenda. Os preços parecem-nos bastante baixos e notável a honestidade das transações. As artimanhas de venda e compra constituem parte do jogo, como se verifica em toda a parte, não atingindo aqui porém a degradação das tácticas puramente comerciais. Decerto que se não mostra o negócio isento daquelas práticas gerais {sempre duvidosas) da mercancia, mas não o vimos tocado pelas corrupções correntes. Talvez nunca tivéssemos assistido a acordos tão limpos. 

«Vamos à Samba Cabeleira» - propõe o meu companheiro de reportagem. Tem a sua fisgada: quer dongos. Pois lá vamos à procura deles. Bairro bastante pobre, este, com as suas cubatas de canas de  folhas de palmeira, as suas crianças, quase nuas, os seus mosquitos e detritos, e os velhos dongos deitados comprida e negramente na areia suja. Pescava-se caranguejo. Pesca pobre, melancólica, resignada. Ao levantar-se a rede da água que dá pelos joelhos, aparecem alguns peixes miúdos e um· monte de caranguejos. Mau negócio, este. Coisa para gosto doméstico. Regressamos. A entrada de uma cubata, uma mulher agachada assava dois  peixes pequenos. Crianças corriam à volta do cheiro.
Que uma aplicação inteligente e generosa da técnica viesse em auxílio dos homens, e não fosse isso à custa  da violentação do mals urgente e nobre apetite: a alegria de estar no mundo. Voto tal porventura ingénuo, mas que constituiu precisamente o fundamento fervoroso e dramático da utopia. Cuja síntese , feita divisa,  poderia ser: pão  e alegria. Ou, no caso: peixe e alegria."

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