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sábado, 2 de setembro de 2023

Ir sozinho mar fora numa frágil piroga, guiado apenas pelos astros e pelo mesmo instinto das aves - largar tudo: os horários, a família, os amigos - é sentir a alma rubra! Alheia aos perigos que rondam por toda a parte - tal foi o meu caso por três vezes - a Bússola dá uma ajudinha mas não indica o lugar - é partir em demanda dos mais ténues rumores e labirintos sagrados!










 
                                     O navegador solitário - então numa canoa - 
sente a paixão incontida que intrinsecamente o povoa, 
que lhe pulsa  e circula nas veias, a evidência
confiante de que um frágil esquife  o poderá conduzir  
através de uma imensa estrada branca e azul 
(que apenas a tempestade e noite cerrada será capaz de toldar ou  denegrir) 
 longe e liberto de qualquer silêncio ou grito 
do mundo do qual se  despede e, decidido, se vai apartar!..

Sente a alegria que o anima de navegar  à vela ou a remo,  
desafiando as mandíbulas encrespadas 
do mar, os dedos irados do demo
os sopros impetuosos  ou irascíveis do vento.
Está ciente da ansiedade  que o vai aplacar 
de vogar ou singrar cavalgando a crista e a cava sobre  cada vaga,
Sim, mesmo antes da largada, sentirá de véspera
a ansiedade  própria de quem parte 
mas não tem a menor certeza do que o espera.
Vai  de cara levantada,
  mas o destino jamais lhe pertencerá..

Sentirá por cima da sua cabeça, na face 

do seu rosto, à sua volta,
por baixo do pequeno "barco" que o transporta, o fluxo
e o refluxo das marés, o latejar do próprio Universo,
umas vezes para o transcender além do centro 
do indivisível círculo ondulante que o cerca, 
outras, para o assolar, engolir e  sepultar,
sob o aroma da ruína, a febril grossa massa líquida,
envolvendo-o, submergindo-o 
pela espuma do salgado  hálito marítimo!


Sulcar a superfície do mar é ir em demanda 
da sumptuosa  beleza ou do  terrível sufoco e destruição!
É navegar por extensões de horizontes que tanto o inquietam 
e atormentam, como  poderão tranquilizá-lo e sossegar-lhe o coração!
Que tão depressa  lhe aterrorizam ou embriagam os sentidos 
como, com igual surpresa, o afrontam com imprevisível provocação.


Partir sozinho numa frágil piroga mar fora é partir 
em demanda dos mais ténues rumores e labirintos sagrados!

É saciar a  fome da floração silenciosa, 
da vagabunda dança de um sopro íntegro  
de fulgor furtivo de sabedoria e pureza. 
É fazer-se ao mar e navegar  sem contrapartidas seguras à partida
e não ter qualquer  certeza de paisagens imaginárias ou reais à chegada!..
É a transparente e claríssima sede de nostalgia dos mais puros céus!
É viajar na senda dos séculos passados, eras volvidas 
ou dos que ainda  hão-vir por  vontade de Deus.

Apelar ao instinto animal (que raramente se engana, tal como o da ave)
É vidência!  Deslumbramento! Itinerário transfigurado.
É trocar o certo pelo incerto
- Sem todavia saber que próximo futuro o aguarda,
a que portos  poderá  arribar,
que enseadas de ilhas frondosas o esperam, 
que  recortes de orlas vai contemplar,
que escolhos vai ter pelo caminho,
que perigos e ameaças


Largar tudo - os horários, a família, os amigos, 
a tranquilidade de um lar - e partir 
mar fora numa frágil piroga
ou até em barcos maiores e bem equipados, 
singrando o ondulante manto líquido, 
trocando o certo pelo incerto, o desconhecido,
não receando os revés da ousadia e  a má sorte,
não temendo as partidas da omnipresente imagem da morte,
alheio a tudo: às inesperadas variações dos ventos,
à dança e contra-dança de correntes poderosas
súbitos vendavais, "súbitas trovoadas temerosas!"


Oh!, como  é fantasmagórica  a imagem, 
ímpia e devastadora a visão do mar e do céu!
Quando, após enormes adversidades, num permanente desafio à sorte,
após se deixarem para trás cerrações da cor da fuligem e do breu,
vigílias infindáveis, incertezas, noites de angústia e assombração,
vogando à flor de turbulentas, enegrecidas  águas,
  fitando continuamente a mesma infinda abstração,
em vez do acolhedor e esperançoso porto de abrigo, 
a tão desejada tranquila praia de água transparente e  de areia fina,  
espelhada de sol e de coral,  rodeada de verdejante e formoso arvoredo,
se depara  - Oh triste ventura! - 
a escarpada encosta, o promontório íngreme do rochedo! 
- Aconteceu-me na  primeira viagem, 
quando, ao pôr-do-sol e com tornado à vista,
me tive que afastar para o largo
(mais uma noite sem tréguas) para não correr o risco 
de ser atirado contra aquela enorme arriba!



Navegar sobre as ondas encapeladas,
ir de velas enfunadas, é sentir a alma rubra!
Alheia aos perigo que rondam por toda a parte,
subindo ou imergindo 
dos insondáveis abismos! 
 Navegar à flor das águas agitadas é ter  por companhia
a menos de um palmo ou da grossura de uma tábua,
a cova funda e horrível da mais funesta e imensa sepultura
Deixar, enfim, que o mar e o vento cumpram a sua palavra!
Não pensar em horários nem perder tempo em coisas banais
Ser sonho ousado que se cumpra e nada mais!

Jorge Trabulo Marques 

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