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terça-feira, 26 de março de 2024

A VOZ DE UM NÁUFRAGO no meio de uma tempestade tropical - No Golfo da Guiné, há 50 anos - No mar dos tornados e tubarões - Ao 22º dia a bordo de uma piroga -Registo do meu diário de bordo num pequeno gravador que pude preservar num vulgar caixote de plástico, igual aos lixo, bem como a máquina fotográfica.

Jorge Trabulo Marques  - A voz de um náufrago no meio de um tornado 
Excertos gravados do meu diário de bordo 11-11-1975 

Ao fim da manhã do 22ª dia, confirmavam-se os meus receios:  - Surge a tempestade: o que eram sinais de velada ameaça, subitamente, transformam-se num afrontoso pesadelo - O mar!... O mar!... Quando se enfurece, o mar é sempre igual em qualquer parte.
 Mas ainda tinha pela frente mais 16 dias, até acostar à Ilha de Bioko, em Dezembro de 1975, onde fui preso e condenado à forca por suspeita de espionagem. Felizmente, lá me salvei, graças a uma mensagem que trazia comigo do MLSTP para ler quando chegasse ao Brasil, que era a travessia que me propunha fazer. - Voltei lá em 2017 para agradecer a quem me salvou daquele pesadelo de cinco dias numa das cadeias mais sinistras de África e talvez da Terra.


Diário de Bordo 4- Neste momento estou a enfrentar violenta tempestade! Tive que lançar a âncora flutuante. A canoa correu sérios riscos!...Nunca estive em tantas dificuldades como agora!… mesmo assim o tempo acalmou ligeiramente, mas ainda continua a tempestade a sentir-se e arrastar-me agora de este para oeste!… Está a retardar novamente a minha viagem!... Devem ser aí umas 11 horas da manhã!…Estava uma manhã estupenda e, de um momento para o outro, apareceu esta tempestade que ameaça a todo o instante virar a minha canoa.

Baú onde pude preservar as memórias que me restam
Diário de Bordo 5 -O mau tempo continua a fazer sentir-se!... Não sei qual o destino onde vou ter!… É difícil neste momento fazer qualquer prognóstico… É um tornado dos maiores que tenho enfrentado...E o pior foi encontrar a minha canoa na posição pior de segurança, porque, a canoa, tem uma posição em que pode enfrentar mais ou menos as tempestades...Tive que lançar a âncora e um bidão de plástico que força com que a canoa fique ligeiramente de proa à vaga…De qualquer modo, a situação continua melindrosa!... Agora não chove mas está a fazer uma grande ventania e o mar está muito cavado!... Estou a ser arrastado para Sul, portanto, estou a ser retardado!... As perspetivas de chegar a terra, estão a ser cada vez mais morosas. É realmente uma situação verdadeiramente dramática!... A canoa esteve há pouco à beira de se virar!... Só por muita sorte, só por milagre não se virou!...

NESTES MARES, EM QUE OS DIAS SE REPARTEM POR IGUAL COM AS NOITES, TUDO É SÚBITO E INESPERADO: Uma simples nuvem no horizonte num claro céu azul e limpo, tanto pode significar o princípio de uma tempestade, como de uma podre calmaria  - Agora, as alterações climáticas estão profundamente alteradas, em todo o planeta; não sei se, naqueles mares, para pior ou melhor - Mas há 44 anos, eu vivia ali um longo e tormentoso drama  Ao sabor dos ventos e das correntes e balanceado para todos os quadrantes. 

Diário de Bordo 6 - Sinceramente, o tornado já passou... Está agora a notar-se a ressaca... Estou bastante afastado da Ilha de Fernando Pó, muito afastado!...Estou convencido que não vou ter a oportunidade que já tive...Neste momento, não sei qual a minha posição; estou bastante para Sul!... Não sei se voltarei a ter a oportunidade que já tive!... Afinal o que me interessa é terra e eu parece que estou a brincar com o meu destino!... Não pode ser!... Estou francamente perturbado neste momento!... Vou ver se consigo conservar o máximo de calma!... Mas já estou saturado... Estou cansado... Estou com fome!… Estou longe de terra! Agora estou muito mais longe do que já estive!

Mais afastado de terra e fatigado.  Não estou desiludido ou desesperançado. Pelo contrário, sinto-me mais forte e mais habilitado. O mar já não é aquele lençol líquido rebelde e ondulante, a sua fisionomia está moribunda  e não demorará a quedar-se numa ténue e plácida superfície.

Diário de Bordo 7 - Duas horas já são passadas... Não há vento. O mar tem uma ligeira ondulação: está mais ou menos calmo... Depois de um grande susto e de momentos de grande aflição... Porque, de facto, a trovoada foi violenta e ameaçou a cada momento voltar-me a canoa, não tivesse eu lançado a âncora flutuante, aliás, que é um sistema que eu improvisei (com um bidão de plástico, amarado a uma corda e à proa da canoa, na primeira noite em que fui assolado pelo tornado, forçando-a a ficar de proa à vaga e que me fez perder o remo e o leme e alijar da maior parte dos alimentos, para evitar ir ao fundo)  mas cheguei à conclusão que posso muito bem dar a terra, à costa de África... Quer dizer...se não houver vento de sul para norte, não preciso de pôr a vela, porque a corrente me arrasta... Se a trovoada surgir de sul, ponho a vela e a canoa evolui para noroeste...portanto, para a costa de África. Cheguei também à conclusão de que, realmente, numa tempestade, a embarcação não pode ficar completamente à deriva; se ficar com a vela, furta-se às vagas e não se vira tão facilmente. Claro que a vela tem de ser pequena, porque, se for grande, pode-se voltar...Por exemplo, neste momento tenho a vela e a canoa está a evoluir para a noroeste...E é pena não haver um pouco mais de vento... Portanto, eu posso muito bem ir dar à costa de África, tanto à Nigéria, como ainda a Fernando Pó. Para ir a Fernando Pó, basta que eu ponha a vela, quando houver vento de sul para norte; não preciso de remo sequer; basta prender a vela; prendo-a e então a canoa desliza para nordeste

Neste momento, já estou mais otimista... Depois daqueles momentos de grande aflição, em que vi quase a canoa virada e tive que me deitar para um dos lados, porque a canoa esteve mesmo... Havia vagas grandes, alterosas!…Entretanto, lancei um plástico agarrado à âncora  (a âncora flutuante), isso fez força, esticou a corda e evitou que a canoa se virasse... A canoa, correu realmente o risco de se virar!... Ora isso não pode acontecer de maneira alguma... Aliás, uma pessoa, nestas condições, a cabeça tem que estar sempre a pensar!... Sempre a improvisar... Não podemos cruzar os braços perante o perigo...Temos que ter sempre ideias novas para fazer face a novas situações... Este é um predicado muito importante... Pois nunca se pode uma pessoa dar por vencida!...Pode chatear-se, saturar-se, enfim, desanimar um pouco, mas por vencida nunca se deve dar!... Eu, apesar de tudo, apesar de já estarem 22 dias passados, aqui nesta situação, verdadeiramente dramática, muito difícil, eu não me dou por vencido!... Eu sei que hei-de ir dar a terra, custe o que custar!... A menos que a canoa se parta, mas isso não há-de acontecer

Livros pouco tempo para os ler
Diário de Bordo - Um pormenor curioso: tem piada que tive uma manhã bonita, uma manhã de sol!...Estava eu a ler um livro: “A Funda” de Artur Portela Filho, quando comecei a ver nuvens escuras e a ouvir um murmúrio, um ruído enorme: vi logo que era vento!... Pois, mal dei aqui uma arrumadela à canoa, surgiu logo essa trovoada, e de que maneira!

O céu por cima da minha cabeça está praticamente desnudado. Mas não tem aquele tom luminoso de um puro azul, que me inspira alegria.  Está encoberto por uma fluidez baça, por uma película levemente brumosa e prateada. Porém, em toda a periferia do horizonte, notam-se altos cúmulos. Estas nuvens têm aspetos muito giros mas algo misteriosos e inquietantes que não me inspiram absoluta tranquilidade. Porventura, reservam-me alguma surpresa desagradável....Vivo numa verdadeira inconstância de altos e baixos...

Diário de Bordo 8 - São neste momento perto das quatro horas da tarde, sensivelmente. Agora há uma paz!... Há um silêncio...O mar está calmo, sereno!... Um verdadeiro contraste com o mar que há bocado estava..O céu tenuemente enevoado, o sol mal se faz sentir....Sinto-me absolutamente desprezado neste momento!

Sinceramente, estou saturado! Saturado, porque não estou a navegar, a fazer da canoa aquilo que eu quero...Estou à mercê do mar, dos ventos, das correntes, das trovoadas!... Sou para aqui aquilo que os ventos e as correntes quiserem!...Estou farto de vislumbrar o horizonte, em busca da desejada costa africana!... Vejo lá longe Fernando Pó...Se calhar tenho de ir para lá, porque, senão às tantas, nem para lá nem para outro lado!...

Sinto ao mesmo tempo uma réstia de esperança... Há bocado vi que a minha canoa podia-se ter voltado de um momento para o outro!... Correu sérios riscos!...Eu não perdi a esperança, apesar de tudo...Tenho tido bastante sorte, também....

Não há ninguém...Nem um barco de pesca, nem um barco!... Não vejo nada!… Nem aves, tão pouco... Nem peixes!... Apenas os tubarões, azuis e os martelos, continuam em volta...Mais nada!... A água tem uma cor escura!...Não sei que dizer mais... Esperar, até quando?!.. Esta ânsia!... Quando eu posso pisar terra firme?!...Quando?!...

Entretanto, tenho aqui o meu pequeno aparelho com o qual , quando tenho um bocadinho de disposição, me vou entretendo a ouvir música (ligo o pequeno rádio, aliás, à Rádio Nacional de São Tomé) - Neste momento está a dar música .Ouve-se aqui perfeitamente apesar da distância. Hoje tem estado a transmitir muitos trechos de música africana. Hoje é o dia da Independência de Angola. Um dia de festa para muita gente e para mim um dia tão triste!

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