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quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Odisseia nos mares do Golfo da Guiné na piroga Yon Gato - Partida há 48 anos da tentativa de travessia oceânica pela rota dos escravos - Neste dia começava aos meus olhos um logo e dramático pesadelo mas a que nunca cruzei os braços ou me dei por vencido - De 38 longos dias e noites após ter sido largado a bordo de um pesqueiro na Ilha de Ano Bom e ainda afastado da corrente equatorial que eu desejava seguir


                                              Jorge Trabulo Marques desejava seguir

TENTATIVA DE TRAVESSIA DE PIROGA PELA ROTA DOS ESCRAVOS - SÃO TOMÉ - BRASIL - O comandante do pesqueiro traiu-me: queria que eu ficasse a bordo a trabalhar e não me largou onde me havia prometido


Dois dias depois da independência de S. Tomé e Príncipe, e após 13 dias da bem sucedida viagem clandestina à Nigéria, regressava de novo à minha maravilhosa Ilha, sem um tostão na algibeira e a bordo de um avião militar português, para concluir a escalada do Pico Cão Grande, com novos apetrechos e realizar a grande travessia oceânica.

Na Ilha de São Tomé, recebera o melhor apoio e carinho e não queria desiludir ninguém; de forma alguma podia defraudar essa ajuda: a canoa fora mandada fazer a um pescador da Vila das Neves, que derrubou um ocá na floresta e que depois o escavou com o machim e à enchó, tendo sido paga com os apoios recebidos de várias pessoas

Mentalizara-me de que a travessia estava ao meu alcance, sabia que, se precisasse de socorro, ninguém me poderia valer. Não levava meios de comunicação com ninguém. Servia-me apenas de uma bússola, orientava-me pelo sol e pelas estrelas.

Mas era assim que se enquadravam os propósitos dessa minha aventura. Os primeiros povoadores das ilhas, também se orientavam como as aves. E eu achava que valia a pena correr todos os riscos. Nada podia demover-me da minha determinação.

Sim, defendo a teoria de que os primeiros povoadores, aqueles que, pela primeira vez, aportaram nas suas baías, foram os hábeis navegadores das canoas, vindos da costa africana.

Demonstrei essa possibilidade através das várias travessias que empreendi - De resto, não será por mero acaso que as canoas surgem nas cartas do século XVII, com idêntico destaque ao das caravelas.

O LONGO E DRAMÁTICO RUMO DE 38 DIAS - DESDE ANO BOM A BIOKO (EX-FERNANDO PÓ)

Concluída a primeira fase da construção da canoa, na floresta, esta é então arrastada para a beira da praia, onde lhe é colocada uma pequena cobertura lateral e outra à popa e à proa para evitar a entrada das vagas.

Com ajuda do mesmo pescador-construtor, ensaiava o primeiro troço de navegação, desde a Vila das Neves ao estaleiro de Germano Castela, na Baía Ana de Chaves, onde lhe é adaptado um leme, carregados os cinco bidões de água potável, vários alimentos e posto um contentor de plástico (do lixo) a fim de guardar a máquina fotográfica e o gravador (que iria servir de registo do diário) bem como algumas peças de vestuário.

Porém, entretanto, constato que mesma estava ligeiramente desequilibrada para um dos bordos, mas, tendo o barco pronto a partir, não havia tempo a perder: um risco que me haveria de causar muitas perturbações, contrariamente à experiência bem sucedida, desde a praia Gambôa à Nigéria

Feito o carregamento e os últimos arranjos, dirijo-me, então, para junto do Hornet, a meio da tarde do dia 18 de, um pesqueiro americano, que se encontrava fundeado ao largo da Fortaleza S. Sebastião, atual Museu Nacional.
Como os ventos e as correntes, são dominantes do Sul para Norte, eu precisava de ser largado na corrente equatorial, um pouco a Sul da Ilha de Ano Bom, que é onde a Corrente de Benguela se divide: uma parte vem perder-se a Norte do Golfo e a outra deriva em direção ao Equador para o coração do Atlântico, até voltar para sul, junto à costa brasileira, num périplo que desce até quase ao Oceano Antártico, confluindo depois para a costa africana.

O comandante, desse pesqueiro, comprometeu-se a largar-me naquela corrente, mas faltou à palavra. Na impossibilidade de apanhar corrente equatorial, decidi empreender o regresso a S. Tomé para tentar a travessia noutra oportunidade . Era o principio de um longo e dramático pesadelo

A ilha Ano Bom, com uma superfície de, aproximadamente, 6,4 km (comprimento) por 3,2 km (largura), parecia um pequeno boné. Localizada no Atlântico Sul a 350 km da costa oeste do continente africano e a 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé, com pouco mais de mil almas, quase esquecidas do resto do mundo, onde o único europeu era um sacerdote, que, aliás, chegou vir a bordo do pesqueiro para receber alguma caridade, dada a penúria e escassez de alimentos, que por lá existia.

Eu próprio fiz permuta com algumas latas de conserva por cocos e bananas, com os pescadores, que também ali chegavam com as suas estreitíssimas canoas para vender à tripulação os seus frutos frescos e, no fundo, para matarem a fome, visto ter então apenas uma ligação anual com o resto do território da Guiné Equatorial.

Ao pôr do sol, inesperadamente, a canoa é então arreada por ordem do comandante, alegando que a canoa estorvava a pesca e não podia deixar-me na zona da grande corrente equatorial, que, inevitavelmente, me arrastaria para oeste ao longo do imenso oceano. Penso que, um tal ultimato, feito àquela hora, com a noite prestes a cair, era mais uma forma de me atemorizar e me convencer a desistir.

Estando o mar calmo, não havendo vento, dada a proximidade da Ilha, havia pois o risco de poder ser assaltado... Praticamente, não conseguia sair do mesmo sítio, sempre com os olhos na pequena ilha que tinha ali bem próximo, receoso que alguma canoa saísse de lá. Até porque as últimas palavras que ouvira do alto do convés, foram bem esclarecedoras: "escapa-te daqui o mais depressa que puderes, senão te roubam!!"...

Já com as primeiras sombras do curto crepúsculo, e após um giro em torno do horizonte, o pesqueiro, aproxima-se de mim e volta a carregar-me a piroga, prometendo largar-me no dia seguinte. Horas depois, em plena noite cerrada, o barco é de novo envolvido por enorme agitação, varrido de proa à popa, pela já habituais tempestades noturnas da época das chuvas, que o assolaram em noites anteriores.

Muitos dos tripulantes, voltam a vir junto de mim, procurando persuadir-me a ficar a bordo com eles:

Jorge! Não vês, como está o mar?!... Vais morrer!!.. Fica connosco!" Por sua vez, o imediato, conduz-me à cabine do Comandante, convidando-me a trabalhar a bordo. Não tendo aceite a proposta, obriga-me assinar um termo de responsabilidade.

E, de facto, ninguém se atrevia a expor-se ao vento e à chuva. À fúria do mar. Eu olhava a escuridão, por detrás das escotilhas e fixava os olhos bem abertos na borbulhante e pálida espuma, ouvia o marulho das vagas a desfazerem-se contra o casco e galgarem-no!... Olhava e escutava pasmado a sua inaudita violência com alguma apreensão, mas estava determinado...

Nada deste mundo podia demover-me da minha determinação!... Sentia-me ao mesmo tempo atraído por uma espécie de resistível desafio e tenebroso fascínio...Sentia que o palpitar do meu coração precisava de vibrar ou se aquietar com o marulho das ondas. Os meus olhos, só queriam espraiar-se ou deleitar-se com o imenso azul clarinho dos céus e o azul profundo da vasta superfície oceânica.

DE S. TOMÉ À NIGÉRIA - Não era a minha primeira experiência solitária, o meu encontro a sós com o mar: já havia realizado a travessia em piroga de S. Tomé ao Príncipe, em 3 dias e de S. Tomé à Nigéria, em 13 dias.

Foi em Março do mesmo ano: largara pela calada da noite para me escapar das perseguições movidas por alguns colonos em represálias aos meus artigos na revista Semana Ilustrada de Luanda, de que era seu correspondente, por via de dar voz ao movimento pró-independência e de denunciar os crimes do massacre do Batepá.

Não me restou outra alternativa senão a de me escapar numa frágil piroga pela calada da noite, numa noite de tempestade, com o beijo amigo e de olhos toldados de lágrimas pela minha companheira santomense, a minha querida e saudosa Margarida.

Sabia que, quanto maior a nau maior é a tormenta. Pois, as canoas, vogando à flor do mar, com vento de popa ou mesmo impelidas pelo remo, entram numa espécie de desenfreada vertigem e furtiva cavalgada do sobe e desce, e, mesmo que as ondas sejam tão altas como as montanhas, elevam-se, acompanham o seu ritmo, a sua hilariante dança!...

Mar! Mar! Mar! ... Esta palavra mágica de três letras não me saía do pensamento. Eu queria a voltar a estar sozinho com os olhos extasiados ou circunscritos em todos os confins do círculo que se abrem sobre o vasto mar! - E, ao sulcar as suas ondas, ir buscar raízes e pedaços da história, perdidos no tempo e no esquecimento

Não perca a descrição do que me sucederia naquele primeiro dia à noite, no próximo dia 21, dia em que fui largado do pesqueiro

NÃO AVANCEI SOZINHO AO MAR SEM ME PREPARAR

Desde o dia que desembarquei do navio Uíge, me deixei impressionar vivamente pela hábil arte dos pescadores nas suas frágeis pirogas -E, logo que pude, não deixei de os contatar e de aprender a sua arte ancestral.

Por isso, sempre que podia, frequentava as belas praias de São Tomé. Comecei por manter estreitos contactos com os pescadores, homens corajosos e simpáticos.

Aprendi a equilibrar-me nas suas canoas, começando primeiro por dar pequenos passeios de praia em praia., até que por fim veio a paixão - E, a par disso, também outras interrogações: perguntava-lhes se já tinham ido de canoa à Ilha do Príncipe, respondiam-me que "só canoa de gente de feitiço" é que o tornado a levava ao Príncipe ou ao Gabão; "outra, vem gandú (tubarão), vira a canoa e come-lhe a perna" .

Achava que era uma superstição, sem fundamento e havia que desfazer esse fantasma: concluía que, se o tornado arrastava para lá a canoa, involuntariamente, também lá se podia ir por vontade própria. Face a essas lucubrações, comecei a pensar que, um dia, eu devia fazer-lhe essa demonstração - A par disso, questionava-me também sobre o seu passado longínquo: se não teria sido através das canoas que os seus ancestrais não teriam vindo do continente africano.

Havia-me preparado, longamente, na arte de navegar nas pirogas dos pescadores desta linda Ilha. Navegava de praia em Praia e afasta-me para o largo. Voltava a canoa de costado para o ar e empinava-me novamente nela. Preparara-me para todas as circunstâncias de tempo e de mar.

Sabia que, se a mesma se virasse no alto mar, e sendo mais pesada, seria muito difícil voltar a meter-me dentro dela. Mas estava certo que as pirogas estão talhadas para enfrentar todas as situações de mar. Tinha a convicção de que havia sido, com tão primitivas mas seguras embarcações que as ilhas do Golfo haviam sido povoadas. E queria demonstrá-lo. Admiro muito a coragem dos nossos primeiros navegadores, mas a sua audácia não pode colidir, de maneira alguma, com a verdade histórica. Confiava nas ancestrais capacidades de navegação das pirogas.

NAS COMEMORAÇÕES DO V CENTENÁRIO DA DESCOBERTA DAS ILHAS DESDE A BAÍA ANA CHAVES A ANAMBÔ


Depois da minha aprendizagem nalgumas praias e baías, impunha-se testar as minhas capacidades. Porém, navegar, desde a baía da cidade, até ao Padrão da Água Ambô, junto à Ponta Figo, praia onde terão aportado as caravelas de João de Santarém e Pero Escobar, foi o cabo das arábias! Fiz o percurso na véspera do dia em que se comemoravam os 500 anos: mas o Capitão dos Portos, só muito a custo, me concedera autorização

DE S. TOMÉ AO PRÍNCIPE – A BORDO DE UM PEQUENO “ESQUIFE”

Não é fácil esquecer-me da minha primeira travessia oceânica, entre as duas Ilhas: apanhei um grande susto e quase me ia afogando mas não esmoreci: de pé ou sentado, sobre uma das travessas, lá naveguei, noite adentro, à vela e a remos, algo perturbado e não sabendo bem para que ponto do horizonte me dirigir: seguia o instinto.

A piroga era muito estreita, não podia desistir, não podia deixar de remar ou velejar. Não podia adormecer, sob pena de voltar a cair de lado e de me virar no mesmo remoinho.

Largara à meia-noite da Baía Ana Chaves, disfarçado de pescador para não ser reconhecido - pois sabia que as autoridades, não me autorizariam a meter-me nessa aventura. Tanto assim, que ao regressar a São Tomé, seria preso pela PIDE (policia do regime) e severamente punido com uma pesada coima.

OBJETIVOS DAS MINHAS AVENTURAS MARITIMAS

Os objetivos dessas minhas travessias foram vários: antes de mais, o fascínio que o mar exerceu em mim, desde o primeiro dia que desembarquei, do velho Uíge, ao largo da baía azulinha da linda cidade de São Tomé; o desejo de me encontrar a sós com a solidão e a vastidão do oceano e, de perante esse cenário, de me poder interrogar, ainda mais de perto, sobre a presença e os mistérios de Deus.

Mas também por razões de carácter histórico-científico e humanitário. Tais como: evocar a rota da escravatura, ao longo da grande corrente equatorial, lembrar os ignominiosos tempos do comércio de escravos e chamar atenção para esse grave problema que, sob as mais diversas formas, continua afetar a existência muitos seres humanos, na atualidade.·

Demonstrar a possibilidade de antigos povos africanos terem povoado as ilhas, situadas naquele imenso Golfo, muito antes dos nossos navegadores, ali terem chegado, contrariamente ao que defendem as teses coloniais, que dizem que as ilhas estavam completamente desabitadas - E a verdade é que, entretanto, já foram encontradas antigas cartas em arquivos, do tempo dos árabes que provam, justamente, esses contactos com povos que, de há muito, ali viviam.

Contribuir para a moralização de futuros náufragos, à semelhança de Alan Bombard. Segundo este investigador e navegador solitário francês, a maioria das vítimas morre por inação, por perda de confiança e desespero, do que propriamente por falta de recursos, que o próprio mar pode oferecer.

Era justamente o que eu também pretendia demonstrar - Navegando num meio tão primitivo e precário, levando apenas alimentos para uma parte do percurso e servindo-me, unicamente, de uma simples bússola, sem qualquer meio de comunicar com o exterior, tinha, pois, como intenção, colocar-me nas mesmas condições que muitos milhares de seres humanos que, todos os anos, ficam completamente desprotegidos e entregues a si próprios -

Porém, quis o destino que fosse mesmo esta a situação que acabasse por viver. E, felizmente, também quis a minha boa estrelinha, que lograsse resistir e sobreviver

Não perca a descrição do que me sucederia naquele primeiro dia à noite, no próximo dia 21, dia em que fui largado do pesqueiro






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