Jorge Trabulo Marques - Jornalista e antigo navegador solitário em frágeis pirogas de S. Tomé
Neste dia, há 47 anos, algures no imenso Golfo da Guiné, andava eu perdido a bordo de um tosco madeiro escavado ao sabor das correntes e dos ventos, enfrentando terríveis tempestades e perigosos ataques de tubarões, esfomeado e martirizado pela incerteza e pela sede - Não arrisquei a vida em busca de efémeras glórias mediáticas ou medalhas, nem as desejo aceitar mas por que me bati por nobres ideais e quis dar sentido à minha vida

E lá parti de calções e descalço, sem dinheiro no bolso, sem relógio e despojado de tudo; confiante de que a canoa seria o meu único soalho e o meu único abrigo e não me deixaria ficar pelo caminho. Todavia, sem saber por quanto tempo e os trabalhos que haveria de ter pela frente....Certo, no entanto, de que (à semelhança das duas anteriores viagens: de São Tomé à Ilha do Príncipe e São Tomé à Nigéria), haveria de encontrar dias e noites de paz e de calma (momentos maravilhosos!) e outros dias e noites de sobressalto, de tormento e agitação

Mas, oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso - Jamais força alguma a desviará a impedirá de mostrar à Humanidade e a toda a Criação, as várias faces do seu rosto. Mas, o meu destino, como será?!... Sozinho e abandonado, debaixo da sua luz, ao sabor dos caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o meu caminho?!... .. Quem me responde?!...
Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago, acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o meu aspeto, magro, atormentado, queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!...
Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...

SÓ O NÁUFRAGO SABE O QUE É A IMENSA SOLIDÃO DO MAR...
Ora subia ora descia numa vertiginosa ascensão e descida. Não havia horizonte à minha frente ou à minha volta. Senão névoas, chuva e mar revolto, vento e cristas espumosas que rebentavam e se desfaziam...

Não, não há palavras para descrever aquilo que ofusca os olhos, agita e assusta o coração, quase asfixia os pulmões e atordoa e deslumbra de espanto e aflição: a alma, o corpo, os sentidos...A vastidão dos mares, quando irados por porcelosos vendavais, em noite escura como o breu, oh desgraçados daqueles que forem surpreendidos sozinhos e em frágeis balsas, em meros esquifes flutuantes, oh! se outro inferno existe depois da morte, talvez melhor sorte terão as almas que já por lá se debatem! - Resta-lhe a resignação à fatídica hora, a imagem da assombrosa expiação, mergulhados na beleza bravia e selvagem do cenário que os ameaça ou já os devora , ou então lutarem, como bravos, até ao último fôlego e nunca se darem por vencidos. Sim, que o desespero nunca seja a última causa do termo das suas vidas.
Como se não bastasse o tormentoso calvário... Por três vezes onde aportei, fui preso e encarcerado por suspeito e perigoso! - O mar fez-me sofrer imenso mas poupou-me a vida. E, se alguma vez pecara, trazia o coração atormentado mas liberto, os olhos cansados de tanto perscrutar as noites cerradas ou os agitados horizontes mas puros de espaço e maresia, tinha a plena sensação de que o meu sofrimento me reconduzira à idade da inocência e me libertara de toda a mácula. Porém, em terra, foi tal a vil desconfiança que sempre se abateu sobre mim, que cheguei a pensar se não foi um castigo infame e maldito ter chegado vivo a terra.. se não teria sido preferível ficar para sempre - morto ou vivo - sobre as ondas ou no fundo do mar..
"Sempre enfim para o Austro a aguda proa
No grandíssimo gólfão nos metemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o cabo a quem das Palmas nome demos.
O grande rio, onde batendo soa
O mar nas praias notas que ali temos,
Ficou, com a Ilha ilustre que tomou
O nome dum que o lado a Deus tocou."
In Lusíadas
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