Jorge Trabulo Marques - Jornalista - Antigo aluno da Escola Agrícola Conde S. Bento, em Santo Tirso - Com videos registados na Roça Uba-Budo, em 2014, bem como na antiga Roça Rio do Oiro, atual Agostinho Neto e noutras roças

Daí que não possa esquecer-me daqueles duros dias da chibata nas costas e das palmatoadas, dadas pelos capatazes, sintonizados com a hierarquia das ordens do Patrão da "Casa Grande", em que não faltava comida, ao estilo farta cavalos, mesmo que fosse fuba com bolor e feijão furado com bicho, lagarta na couve, peixe seco quase apodrecer, o que não mata engorda, porque também era a ração que davam às vacas e a outros animais, pois, saco vazio não fica de pé e interessava que todos, sem exceção, fossem animais de carga.


.
Além do palácio do administrador, dos armazéns, das várias instalações tecnológicas ,escritórios, das senzalas, creches, capelas, hospitais, a bem dizer também podiam reprimir e aplicar castigos físicos à vontade.
No entanto, em 2014, quando ali voltei, pude constatar, com um misto de tristeza e decepção, que, além das instalações se encontrarem muito degradadas, praticamente em ruinas e irreconhecíveis, nem por isso a vida ali conheceu melhores condições. Tendo ouvido desabados, como este: no tempo da escravatura, tínhamos comida, agora, que somos livres, falta-nos quase tudo.
NÃO ESQUEÇO A DUREZA DAQUELES DIAS NA ROÇA
Sim, continua ainda muito presente na minha memória, aquele recuado ano, quando para ali fui em 1963, com 18 anos, a fazer um estágio do meu curso agrícola, que havia tirado em Santo Tirso, um tal Pereira, administrador, pouco tempo depois, mandou-me de castigo a contar cacaueiros velhos para a Roça Ribeira Peixe, da mesma Companhia Agrícola Ultramarino, por me ter recusado a tratar os pobres serviçais por tu: - um dia chamou-me lá à administração, para me dar esta ordem: “ o Sr Feitor Geral, já lhe disse, mais de umas quantas vezes, que os serviçais têm de ser tratados por tu; não se lhes pode dar confiança: tem uma hora para arranjar a mala; preciso do jipe, não se demore. Vai fazer o seu estágio na Ribeira Peixe.
Todos os dias, eu e o pobre do escravo, deparávamos com serpentes a levantarem-se ao nosso lado ou dependuradas nos ramos: como ele andava descalço e eu com galochas, um dia pisou uma dessas cobras pretas, picou-o e acabou por morrer ali mesmo: peguei no cavalo e fui ao hospital a buscar um antídoto, mas, quando voltei, já tinha morrido – Deparei com uma imagem impressionante: boca espumosa e a cor da pele passara de negro a um rosto contorcido e raiado de manchas violáceas
Roça Uba Budo 2014 - |
Fiquei de tal maneira chocado e revoltado, que, nesse mesmo dia à noite abandonei a roça: fui a pé até S. João dos Angolares, onde dormi no mato, espicaçado por nuvens de mosquitos.
No dia seguinte, apanhei uma boleia para a cidade: e, como não tinha dinheiro, andei por lá a dormir no parque e a ter que me alimentar da fruta que ia colher no mato. Uns dias depois, fui à CM, que me arranjou um emprego de capataz dos jardins da cidade: Mas, como, quase todos os dias, passava por mim, um tal Aprígio Malveiro, secretário da Câmara, a chatear-me a cabeça, armado em roceiro, insinuando que eu também tinha pegar no machim e limpar as ervas, fui pedir emprego na Roça Rio do Ouro, onde fiquei até ir cumprir o serviço militar.


CUSTO DE VIDA
Ah! E o pão? O pão nosso de cada-dia? Para o dobro!
(...) Num destes , dias ,encontramo-nos com certa dona de casa ,no mercado Municipal. A título de curiosidade, perguntamos-lhe que espécie de géneros ia comprar. ( pagar). Começou por nos dizer, antes de mais, que era mãe de cinco filhos. E estava a adquirir condimentos para preparar um calúlú, o prato típico da terra ,para o almoço do seu marido e dos seus cinco filhos. E já que nos falou do seu marido, quisemos também saber qual a profissão e quanto ganhava.
Referiu que trabalha na Roça e ganha 28$00 diários. Em seguida, e antes de entrarmos no assunto que nos tinha levado a interpelá-la, pretendemos igualmente nos dissesse qua era a sua ocupação. Se fazia mais alguma coisa além das lides domésticas.
A esta pergunta, acrescentou que apenas cuidava dos filhos, pois eram ainda menores, andavam todos na escola, e, fora isso, tratava ainda de um pouco de criação. De uns leitãozitos, uns tantos bicos de galinhas, e de uma cabra, que criava lá no seu quintal. Criação essa, que, em seu ver lhe dá bastante jeito para fazer face aos seus gastos domésticos.
Depois falou-nos então, perto de uma banca que ali se encontrava, com os géneros expostos, dos que iria comprar para fazer o dito calúlú para o almoço do seu marido e dos seus filhos.

Depois passaria pela padaria, onde, como eram sete ao todo lá em casa, gastaria mais 7$00,pois o pão agora está a 1$00 cada um. Quanto à fruta, que teria de levar umas 7 ou 8 bananas, para sobremesa, de que não poderia prescindir, e lhe custariam 2$50
Finalmente, que teria apenas de pensar no frango ou galinha para confecionar o calúlú, mas de que ,apesar de estar a 35$00 o kg, não teria problemas pois de boa criação felizmente tinha lá no seu quintal.
Eis, pois, a traços largos os géneros e o custo por que viria a ficar um dos pratos a uma das muitas atarefadas e preocupadas donas de casa, á no burgo, para uma refeição do seu agregado familiar num vulgar dia da semana.
CONTINUAM A AUMENTAR AS COTAÇÕES DO CACAU, COPRA E COCONOTE
Em contrapartida (até perece um paradoxo) a principal mão-de-obra, pelo menos a mais apreciada até a data, continua a registar acentuada sangria para o exterior, como consequente reflexo de uma menor produtividade e aproveitamento das explorações agrícolas.
Um dos motivos da retirada dos trabalhadores rurais para outras parcelas' do território nacional, nomeadamente para a Metrópole, é, como se sabe, o da procura de uma melhor compensação salarial, e de outras regalias que os 28$00 que aqui lhes pagam não chega a satisfazer.
Nenhum comentário :
Postar um comentário