Jorge Trabulo Marques - Estes últimos dias têm sido de um assolar de atribuladas recordações - Peço desculpa por ainda não ter editado o video dos Prémios Lusiadas, mas não está esquecido - Vou ver se termino hoje a composição de várias centenas de fotografias e as edito na postagem da reportagem https://canoasdomar.blogspot.com/2024/10/premios-da-lusofonia-8-edicao-2024-o.html
Tenho a sensação de que não pertenço ao mundo donde vim: reconheço-me um excluído, um inútil - talvez o único elo . em que nele me reveja, seja apenas o sentimento dos que sofrem a desesperança de nada terem.
Jorge Trabulo Marques - Tenciono recordar.-lhe apenas algumas páginas dos meus atribulados 38 dias. Mas não todos os dias. Já editei várias neste blogue em Outubro e Novembro de 2019 Pois, sendo jornalista, não quero servir-me deste espaço, unicamente para uso da minha vida pessoal . Eu resisti e estou vivo, graças a Deus. Mas, nos dias que correm, há muita gente que está vivendo uma odisseia pior de que a minha. Poderei vir a editar mais alguns textos sobre esta minha dramática experiência mas não com carácter regular. Meu Bem-haja pela sua atenção.
Manhã parda e brumosa. Aguaceiros a pairar por tudo quanto é vastidão... O céu um espesso manto acinzentado!.. A incerteza a ganhar foros de domínio sobre a esperança. E a angústia a minar-me à alma. Momento grave .De profundo vazio. Em que até o próprio Universo se me afigura morto, decompondo-se das suas formas, ante os poderes supremos dos elementos destruidores.Mais uma noite que não me dera descanso: chuva e vento. Praticamente desde que as trevas cobriram o mar.
Procurei proteger-me com uma capa e uns plásticos, mas de pouco me serviu. A água caia-me de todos os lados. Se não era a que vinha do alto, era a que a franja das vagas se fazia saltar a cada instante. Depressa a canoa se transformou num autêntico charco.
E então que dizer de mim?...Foi horrível! Uma vez mais uma noite angustiante e horrível! Aliás, as palavras que verti para o meu diário gravado, não o desmentem.
Diário - É já manhã do terceiro dia que me encontro sozinho, neste vasto Golfo da Guiné.
Só vejo céu e mar!...Este mar escuro! De um azul profundo, escuro! Mais nada!...De vez em quando uma ou outra ave na procura de algum peixe.
Passei uma noite dificílima! tirando agua permanentemente desta embarcação, que já não é uma canoa!... É uma banheira!...
Água por todos os lados! Estou completamente molhado. Encontro-me náufrago! Não tenho domínio na minha canoa! Perdi o leme. Algumas coisas também... Até agora tenho mantido a serenidade, tenho-me quedado num autêntico mutismo...Não tenho dito palavras nenhumas, mas ao mesmo tempo tenho a sensação de que tudo aqui tem vida!...E que falo...Falo com tudo o que me rodeia na minha canoa. . . Todas as coisas que aqui tenho, tem formas de gente! de pessoas...Mas não falo..
À força de contemplar o que me rodeava e os parcos objectos que me restavam na canoa, parecia-me encontrar em cada um deles um certo carácter, algo muito humano, uma certa fisionomia ou cumplicidade com o meu sofrimento.
Imagem da minha largada das Neves para a Baía Ana Chaves, S.Tomé - Sabia que me ia expor a enormes riscos - e já os tinha vivido em anteriores travessias de S. Tomé ao Principe e de S. Tomé à Nigéria - mas estes pareciam-me prolongar-se por eternidades
À força de contemplar o que me rodeava e os parcos objectos que me restavam na canoa, parecia-me encontrar em cada um deles um certo carácter, algo muito humano, uma certa fisionomia ou cumplicidade com o meu sofrimento.
E, às vezes, era tal a empatia que me dava vontade de me abrir ao meu silêncio e desabafar o que me ia na alma. Na realidade, nada ali podia ter formas humanas, naquele deserto unicamente povoado de mar; o que eu desabafava para o meu gravador era tão só o excesso do meu silêncio: em que interiormente me escudava e da erma e estranha paisagem em torno de mim.
Diário - "Há um silêncio ameaçador!...Umas vezes há um silêncio. . .Outras vezes há vozes…que eu ouço não sei donde! . . .Nesta imensidão que existe em meu redor!...0 mar. o azul e o céu!
Mas por que é que estou aqui?... Afinal, porque?... Aqui?.. Afinal porque?...
Eu já não sei porque!... Por que o destino quis?!... Por que eu quis?!...Não sei...Há de ser o que o destino quiser!...
Sim, sentia-me demasiado insignificante perante tamanha grandeza, e, por isso desprovido dos meios mais elementares para a poder vencer, via-me assim como que entregue às mãos de um destino incerto. Pois que segurança, que tranquilidade me poderia oferecer um simples pau escavado atirado para ali de qualquer modo à brutalidade das ondas?... Nenhuma. Absolutamente nenhuma.
Respostas para todas as minhas dúvidas, por enquanto, ainda as não tinha.
Entender a razão na sua amplitude real, porque ali me encontrava perdido, porque tao repentinamente me havia transformado naquela miséria ,eu que deixara a linda Ilha de São Tome, com tanta confiança, para já era ainda muito cedo para responder a tantas interrogações. Digamos, tudo se afigurava muito nubloso para o espírito.
A surpresa fora demasiado grande. Além disso, assaltava-me, a todo o momento, aquilo a que vulgarmente os marinheiros chamam a angústia do material. A angústia e o receio de que a minha canoa não resistisse aos constantes embates das águas.
E, se por um lado, subsistiam tais inquietações, quanto a fragilidade da minha embarcação ,por outro - e este talvez o pior aspeto - era a sensação de impotência para a Governar, ante aquele mar bravio.
Até a chuva .A própria chuva não parava.
Aliás, estava-se no tempo dela: um período que naquelas latitudes se prolonga por nove meses. E em que os tao conhecidos tornados se podem desencadear a qualquer momento.
De resto, naqueles mares equatoriais, o tempo e mesmo assim: chuvadas, tornados, calmarias entrecortadas com tempestades ou agueceiros. Dificilmente, passa um dia, que não se verifiquem as condições atmosféricas mais bruscas e variáveis.
A canoa ia, por isso, transformada num charco.
Primeiro, fora a chuva diluviana da noite tempestuosa, que não parara no dia seguinte, nem na noite que lhe sucedeu. Agora, ao terceiro dia, tanto de manhã, como durante a tarde, era praticamente à copia fiel de um tempo agitado e cinzento que não me dava um minuto de descanso.
Por isso, os banhos inoportunos por sobre a minha roupa, por sobre o meu corpo, eram uma constante, que fisicamente me desgastavam e, em consequência, me causavam um permanente mal-estar, as vezes muito próximo do desanimo.
Que imagem, então a minha, meu Deus!...E como todas as minhas coisas andavam por ali mo deus dará, sobre o fundo daquele tronco escavado! ...É donde até exalava um cheiro fétido devido a frutos já apodrecidos e a odores do meu corpo Que, por causa da humidade e da água salgada, se ia cobrindo de chagas nalgumas partes.
Ah!...Não o esqueço!...Não esqueço tais horas infinitas!
Dário – “Na minha canoa reina o caos...eu sou o caos! Não sou ninguém, não sou nada! ...Absolutamente nada!...E,como tal não me devo preocupar com coisa alguma...
Vejo apenas uma imensidão de água! Uma vastidão de oceano…Vejo toda esta força quase que a tentar tragar-me, engolir-me! No entanto, este nada! este ninguém! mantém-se aqui nesta fragilidade!.. Que ameaça ser engolida todo o momento!...
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