Jorge Trabulo Marques - Jornalista Desde 1970 - A caminhos dos 80 anos
Era o princípio de um longo e dramático calvário mas a que nunca cruzei os braços ou me dei por vencido., ao longo dos 38 dias e noites após ter sido largado a bordo de um pesqueiro na Ilha de Ano Bom e ainda afastado da corrente equatorial que eu desejava seguir , decidi inverter o percurso, visto o comandante me ter forçado a largar a canoa ou ficar a bordo a trabalhar,
Feito o carregamento e os últimos arranjos, dirijo-me, então, para junto do pesqueiro Hornet, a meio da tarde do dia 18 de, um pesqueiro americano, que se encontrava fundeado ao largo da Fortaleza S. Sebastião, atual Museu Nacional.
Como os ventos e as correntes, são dominantes do Sul para Norte, eu precisava de ser largado na corrente equatorial, um pouco a Sul da Ilha de Ano Bom, que é onde a Corrente de Benguela se divide: uma parte vem perder-se a Norte do Golfo e a outra deriva em direção ao Equador para o coração do Atlântico, até voltar para sul, junto à costa brasileira, num périplo que desce até quase ao Oceano Antártico, confluindo depois para a costa africa
O comandante, desse pesqueiro, comprometeu-se a largar-me naquela corrente, mas faltou à palavra. Na impossibilidade de apanhar corrente equatorial, decidi empreender o regresso a S. Tomé para tentar a travessia noutra oportunidade . Era o principio de um longo e dramático pesadelo
A ilha Ano Bom, com uma superfície de, aproximadamente, 6,4 km (comprimento) por 3,2 km (largura), parecia um pequeno boné. Localizada no Atlântico Sul a 350 km da costa oeste do continente africano e a 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé, com pouco mais de mil almas, quase esquecidas do resto do mundo, onde o único europeu era um sacerdote, que, aliás, chegou vir a bordo do pesqueiro para receber alguma caridade, dada a penúria e escassez de alimentos, que por lá existia.
Eu próprio fiz permuta com algumas latas de conserva por cocos e bananas, com os pescadores, que também ali chegavam com as suas estreitíssimas canoas para vender à tripulação os seus frutos frescos e, no fundo, para matarem a fome, visto ter então apenas uma ligação anual com o resto do território da Guiné Equatorial.
Ao pôr do sol, inesperadamente, a canoa é então arreada por ordem do comandante, alegando que a canoa estorvava a pesca e não podia deixar-me na zona da grande corrente equatorial, que, inevitavelmente, me arrastaria para oeste ao longo do imenso oceano. Penso que, um tal ultimato, feito àquela hora, com a noite prestes a cair, era mais uma forma de me atemorizar e me convencer a desistir.
Estando o mar calmo, não havendo vento, dada a proximidade da Ilha, havia pois o risco de poder ser assaltado... Praticamente, não conseguia sair do mesmo sítio, sempre com os olhos na pequena ilha que tinha ali bem próximo, receoso que alguma canoa saísse de lá. Até porque as últimas palavras que ouvira do alto do convés, foram bem esclarecedoras: "escapa-te daqui o mais depressa que puderes, senão te roubam!!"...
Já com as primeiras sombras do curto crepúsculo, e após um giro em torno do horizonte, o pesqueiro, aproxima-se de mim e volta a carregar-me a piroga, prometendo largar-me no dia seguinte. Horas depois, em plena noite cerrada, o barco é de novo envolvido por enorme agitação, varrido de proa à popa, pela já habituais tempestades noturnas da época das chuvas, que o assolaram em noites anteriores.
Muitos dos tripulantes, voltam a vir junto de mim, procurando persuadir-me a ficar a bordo com eles:
Jorge! Não vês, como está o mar?!... Vais morrer!!.. Fica connosco!" Por sua vez, o imediato, conduz-me à cabine do Comandante, convidando-me a trabalhar a bordo. Não tendo aceite a proposta, obriga-me assinar um termo de responsabilidade.
E, de facto, ninguém se atrevia a expor-se ao vento e à chuva. À fúria do mar. Eu olhava a escuridão, por detrás das escotilhas e fixava os olhos bem abertos na borbulhante e pálida espuma, ouvia o marulho das vagas a desfazerem-se contra o casco e galgarem-no!... Olhava e escutava pasmado a sua inaudita violência com alguma apreensão, mas estava determinado...
Nada deste mundo podia demover-me da minha determinação!... Sentia-me ao mesmo tempo atraído por uma espécie de resistível desafio e tenebroso fascínio...Sentia que o palpitar do meu coração precisava de vibrar ou se aquietar com o marulho das ondas. Os meus olhos, só queriam espraiar-se ou deleitar-se com o imenso azul clarinho dos céus e o azul profundo da vasta superfície oceânica.
Não era a minha primeira experiência solitária, o meu encontro a sós com o mar: já havia realizado a travessia em piroga de S. Tomé ao Príncipe, em 3 dias e de S. Tomé à Nigéria, em 13 dias
Foi em Março do mesmo ano: largara pela calada da noite para me escapar das perseguições movidas por alguns colonos em represálias aos meus artigos na revista Semana Ilustrada de Luanda, de que era seu correspondente, por via de dar voz ao movimento pró-independência e de denunciar os crimes do massacre do Batepá.
Não me restou outra alternativa senão a de me escapar numa frágil piroga pela calada da noite, numa noite de tempestade, com o beijo amigo e de olhos toldados de lágrimas pela minha companheira santomense, a minha querida e saudosa Margarida.
Sabia que, quanto maior a nau maior é a tormenta. Pois, as canoas, vogando à flor do mar, com vento de popa ou mesmo impelidas pelo remo, entram numa espécie de desenfreada vertigem e furtiva cavalgada do sobe e desce, e, mesmo que as ondas sejam tão altas como as montanhas, elevam-se, acompanham o seu ritmo, a sua hilariante dança!...
Mar! Mar! Mar! ... Esta palavra mágica de três letras não me saía do pensamento. Eu queria a voltar a estar sozinho com os olhos extasiados ou circunscritos em todos os confins do círculo que se abrem sobre o vasto mar! - E, ao sulcar as suas ondas, ir buscar raízes e pedaços da história, perdidos no tempo e no esquecimento
Dois dias depois da independência de S. Tomé e Príncipe, e após 13 dias da bem sucedida viagem clandestina à Nigéria, regressava de novo à minha maravilhosa Ilha, sem um tostão na algibeira e a bordo de um avião militar português, para concluir a escalada do Pico Cão Grande, com novos apetrechos e realizar a grande travessia oceânica.
Na Ilha de São Tomé, recebera o melhor apoio e carinho e não queria desiludir ninguém; de forma alguma podia defraudar essa ajuda: a canoa fora mandada fazer a um pescador da Vila das Neves, que derrubou um ocá na floresta e que depois o escavou com o machim e à enchó, tendo sido paga com os apoios recebidos de várias pessoas
Mentalizara-me de que a travessia estava ao meu alcance, sabia que, se precisasse de socorro, ninguém me poderia valer. Não levava meios de comunicação com ninguém. Servia-me apenas de uma bússola, orientava-me pelo sol e pelas estrelas.
Mas era assim que se enquadravam os propósitos dessa minha aventura. Os primeiros povoadores das ilhas, também se orientavam como as aves. E eu achava que valia a pena correr todos os riscos. Nada podia demover-me da minha determinação.
Sim, defendo a teoria de que os primeiros povoadores, aqueles que, pela primeira vez, aportaram nas suas baías, foram os hábeis navegadores das canoas, vindos da costa africana.
Demonstrei essa possibilidade através das várias travessias que empreendi - De resto, não será por mero acaso que as canoas surgem nas cartas do século XVII, com idêntico destaque ao das caravelas.
Não perca a descrição do que me sucederia naquele primeiro dia à noite, no próximo dia 21, dia em que fui largado do pesqueiro
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