Jorge Trabulo Marques - Algures no Golfo da Guiné, 21 de Novembro de 1975 -
A NOITE EM QUE O NÁUFRAGO E POETA CANTOU E ESCUTOU A RÁDIO NACIONAL.DE S. TOMÉ E PRÍNCIPE -
A minha canoa mantém-se imperturbável...
Está totalmente alheia à grande incerteza
e aos muitos fantasmas que me povoam a alma...
À inquietude que absorve o meu coração.
E voga pelo negrume varrido da noite
como se nada tivesse a temer!...
É admirável a sua altiva galhardia!
Parece conduzida por uma estranha força
que a leva a um ponto preciso da vastidão!..
Mas, oh Deus! Eu queria dormir!...
Necessitava de descansar, adormecer!...
Cair em sono agora e acordar ao amanhecer!
Ser como o rude barqueiro,
que ao fim de uma longa jornada,
dura e sem descanso,
encosta o seu barco à margem e dorme...
embalado pelo sussurrar da ramagem que o envolve!...
Mas aqui, é o mar a bramar! a bramar!...
É o mar sem fim e sem fundo!...
Não há margens, nem portos de abrigo!..
É a noite eterna!... É um outro mundo!..
O mar! O mar! Que a todos faz pasmar e sonhar! Ou amedrontar! - Adorei-o cantar algumas vezes na solidão das noites daqueles 38 dias em que andei perdido no vasto Golfo da guiné - Assim o recordo também neste registo gravado que pude preservar num vulgar caixote do lixo, sim o gravador e a máquina fotográfica. Se não tivesse essa memória, quem acreditava? - Mas Deus o proteja de alguma vez ter que enfrentar esta penosa situação.
Três dias depois, registaria estas palavras no meu diário, num pequeno gravador que logrei preservar bum vulgar contento de plástico, igual aos do lixo 35ºDia - Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa.(....) que está cheia de água!...(..) Há uma fraqueza geral em mim.. Não sinto nada no estômago... É um saco de fole...Mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.

Diário de Bordo - Vi duas baleias na altura da trovoada. Muito próximas! Mas isso não me assustou... O que me estava a preocupar era realmente o tempo que a trovoada estava a demorar... Pois espero que me tenha favorecido... Continuo a não desesperar ... mas estou cansado!... Tenho fome! Muita fraqueza!... Estou a aguentar... Estou tentando... Estou tentando não me precipitar... Por suportar isto com serenidade.

A aurora mal começara a irromper, já eu me remexia no fundo da canoa e me levantava para avaliar as condições atmosféricas do novo dia. Ontem, quando me deitei, já a horas tardias, ainda caíam alguns chuviscos, esperando, todavia, que, ao amanhecer, o tempo se recompusesse - Vejo, porém, que o tempo continua instável; encontro-me envolvido num autêntico inferno cinzento. Estou para aqui todo encharcado, devido aos balanços desatinados deste madeiro flutuante, que me arrasta não sei para onde, sobre um mar exaltado de espuma

Do que observo à minha volta, disso vou dar conta no meu diário gravado, cujo gravador voltei a retirar do meu baú de plástico, um velho caixote do lixo


Esta manhã verifiquei a existência de pequenas ervas. Paus... dejetos de aves...Também observei a passagem de uma garça...Portanto, tenho a impressão que realmente estou muito próximo da praia.
Já comi qualquer coisa. Aliás, comi a ave que ontem apanhei. Não tenho já o estômago vazio... Entretanto, logo que chegue a terra, terei que arranjar outra coisa... Para já, estou um bocado otimista!... Vou pôr a vela... O mar está cavado!... Mas vai permitir a colocação da vela.... Portanto, com um bocado de dificuldade, vou ver se consigo apressar a minha aproximação... até à costa africana.... Claro que de manhã é difícil ver os contornos de terra... Só de tarde é que me é possível.... De manhã o horizonte apresenta-se sempre com uma certa neblina. É impossível ver-se.... Mas tenho um pressentimento de que não estou muito afastado.



As ondas continuam muito feias, a fustigar-me a canoa numa dança, quase de enlouquecer. Sinto-me fraco e trémulo da fome e do cansaço. Não é possível ter um sono reparador. Os enormes chapes, chapes, na madeira, acordam-me, e, por vezes, até me cortam a respiração. Se não é a chuva, são os constantes safanões e batidas das vagas sobre o costado da canoa. É depois o consequente chincalhar da água que se acumula no fundo, que entra pelas rachas e que não me dá descanso. Pois, de volta e meia, lá tenho eu de pegar no vertedouro.
Quando o mar está mais bravo, é impossível adormecer. Sempre que preciso de me movimentar para qualquer trabalho ou acudir a esta ou àquela necessidade, cambaleio como uma bêbado Água para beber, das chuvas, não me tem faltado. Ainda se dispusesse de pesca ou de alimentos, mas não tenho nada para comer, com que matar a fome... A ave que, ontem apanhei, já a comi mas só era pele e ossos. Oh. mas não posso desistir. Mesmo sem remo adequado, tenho que me esforçar por navegar. Sei que é uma luta tremenda, mas lutarei enquanto puder!...Só Deus sabe, porém, o meu esforço.. Nas calmarias fico imobilizado, e, quando o mar está agitado, torna-se muito difícil navegar.
Diário de Bordo 2-Coloquei a vela, durante cerca de três quartos de hora, mas devido à violência do mar - pois as ondas estão bastante alterosas - é impossível continuar a velejar!... A canoa ameaça virar a cada instante... Cá ando à deriva... Talvez até chegar à praia!.... Realmente, faz-me passar tantos trabalhos!... Parece impossível!... Não havendo qualquer trovoada, o mar estar assim nesta situação!... O vento não é muito mas o mar está agitadíssimo!
Já vi aqui a existência de mais alguns paus, bambus, manchas... Mas não vejo ainda quaisquer contornos da costa africana. Pois há muita neblina no horizonte, lá longe... De qualquer modo, tenho um pressentimento que me estou a aproximar.... Sinceramente, o mar aqui está muito bravo!... O mar aqui está realmente difícil! Com ondas fortes!
Impedido de velejar, procuro um pouco de descanso mas não consigo ter o mínimo de condições. A bem dizer, já nem sei que posição me será menos incómoda. Deitado, fico com as costas doridas e, se me sentar, com as nádegas numa chaga, devido à humidade e outras pústulas que me apareceram nas partes, se me sento, torna-se-me um tormento, insuportável... Indo de pé, sinto tonturas e é demasiado arriscado, porque as pernas fraquejam-me e falta-me o equilíbrio. Por isso, que alternativas poderei eu então escolher?!... Bom, embora não sendo lá muito confortável, resolvi pôr-me de joelhos.

Ao largo, o mar enrola, sobe, eleva-se em alterosas montanhas, ondula, num sob e desce permanente, mas não provoca tanta rebentação. Sim, a maior ameaça não está no alto mar mas na aproximação à terra. Então, se houver uma tempestade, o perigo ainda é maior! Mais difícil se torna o equilíbrio. Vamos lá a ver em que circunstâncias me poderão aproximar. Por agora, o meu pensamento, não vai tanto para os inúmeros perigos que me rondam, mas para a sua fragilidade. Estas são, pois, as interrogações e as preocupações que me acodem ao pensamento e que vou transmitir para o pequeno gravador.
Diário de Bordo 3 - Espero que a minha canoa, continue a portar-se bem. Pois, como já disse algumas vezes, está desequilibradíssima! O que me tem dificultado sobremaneira a minha viagem... Mas... há outro pormenor importante, é que ela mete água! E cada vez mete mais água!... Tem várias rachas! Está estalada!.. Enfim, espero que até à praia ela ainda resista....
Diário de Bordo 4 A direção que estou a tomar é completamente diferente do habitual.... Estou a navegar no sentido de oeste para este... Quer dizer... as correntes aqui têm outra direção... Aliás, eu já esperava... que junto à costa tivesse outra direção... Estão quase acompanhar a costa... Portanto, vão retardar a minha aproximação.... Tenho cá um pressentimento que vai ser arrastada para aos Camarões.... Porque a canoa está a derivar muito para leste. É natural que isso aconteça. Esperemos...
.Diário de Bordo 5 Entretanto, indiferente à bravura do mar... estou aqui deitado no fundo da canoa, ouvindo música de estações africanas - O meu pequeno transístor ainda resiste, as pilhas vão ficando fracas mas ainda o posso sintonizar em várias emissoras africanas.
.UM COCO PRODIGIOSO VEIO PARAR JUNTO À CANOA E MATAR-ME A FOME .....

No mar vi vestígios de óleo... que me dão a impressão de não estar muito longe de terra... A verdade é que foi um dia exaustivo!... Estou exausto!!...Estou cansado!... O mar deu-me muito trabalho!... As vagas muito fortes! E a chuva torrencial!!...Durante quatro ou cinco horas não parou de chover!... Não sei se ainda voltará a chover... Neste momento, não está a chover....
SABOREANDO O COCO DIVINAL..
Diário de Bordo 7 Já estou a comer o coco, meu Deus!... Mas que coisa tão saborosa!... Tão maravilhosa!... Isto foi Deus!!... Isto foi Deus que mo ofereceu!... Eu vi-o realmente à distância!... Eu não acreditava que ele passasse junto da minha canoa!... E veio mesmo ter à minha canoa!... Um belo coco! Tinha água... e tem uma bela amêndoa! Estou a comê-lo!... Estou a tentar matar a fome com ele!... Para mim foi a melhor oferta!... Não podia ser melhor coisa.... este coco!... Não sei donde ele veio! Mas a verdade é que .... veio ao meu encontro! Ele veio ajudar-me! a preservar a minha vida!... Estou muito satisfeito por este coco!...
A satisfação mistura-se com uma comoção que raia as lágrimas. E, à medida que o vou comendo, com insaciável apetite, no meu espírito reforça-se a imagem de que foi a mão de Deus que finalmente se lembrara de mim, Por isso, ao mesmo tempo que o reparto por bocadinhos, que avidamente vou levando à boca e mastigo, com a outra seguro o gravador, como que possuído por um crescente e comovedor fervor religioso, para que tão sublime momento, não deixe de ficar registado à posteridade.
Diário de Bordo 8 Estou comendo o coco! Avidamente!... Sofregamente!... Digam lá o que disserem!... Neste mar!...(choro) Infinito!... Um coco vir-me parar às mãos?!... Isto é obra de Deus!!!... Isto é obra de Deus!!... Não é outra coisa!... Meu Deus!.. Tem-me ajudado muito! Até para enfrentar estas vagas!
Sim, e, com o cair da tarde, atrás de enormes vagas, outras vagas alterosas, vão sucedendo, descomunais e loucas! Crescendo e avançando em tenebroso carrossel, cuja escuridão não tardou que tomasse conta de céu e do mar. Tornando a solidão à minha volta, ainda mais sinistra e negra. Nem sequer me permitindo descortinar os contornos da própria canoa. Sim, tão intensa é a sua ondulante negridão!... No entanto, mesmo diluído nas suas sombras, não me sinto perdido nem desesperado. Invade-me uma sensação de profunda melancolia. Sou como que possuído por uma espécie de sentimento sobrenatural de aceitação mas que me obriga a ficar em permanente estado de vigília. O mundo para onde estou sendo arrastado é um mundo de trevas, convulsivo e fantasmagórico! Não é possível ser descrito por palavras: é mundo intemporal.... Noite tormentosa, infinita!... Agitação! Escura noite! Imensidão!.. Nuvens cerradas, espessas e baixas, que parecem tocar as montanhas e os contornos das não menos escuras águas!... Não sei como lutar porque tudo quanto possa ameaçar-me, remove-se em torno de mim na mesma imensa negridão!.. .Sei apenas que não posso desistir de viver e, por isso, vou continuar atento enquanto o meu coração palpitar.
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