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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Independência de Angola, ocorreu a 11 de Novembro de 1975 Recordo como eu vivi esse dia perdido no mar há 22 dias, no meu diário gravado - pois era jornalista em S. Tomé – Registos do meu diário de bordo, por vezes misturados com sons da Rádio Nacional de S. Tomé e Príncipe, que proclamou a independência em 12 de Julho daquele mesmo ano, - Era o dia do Aniversário de minha mãe, 11-11-1917 – Um dia de festa para muita gente e para mim uma noite e um dia de profunda tristeza, de lágrimas e de abandono -Veja como eu vivi esse dia perdido no mar

                             
Jorge Trabulo Marques - Jornalista e investigador - Autor  de três travessias no Golfo da Guiné - S. Tomé-Príncipe - 3 dias - De S. Tomé à Nigéria 13 - De Ano Bom- a Bioko 38  


Noticias de hoje,  do partido no poder, referem que "o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), os 49 anos da independência servem de reflexão. Mário Pinto de Andrade, secretário do Bureau Político para as reformas do Estado, Administração Pública e Autarquias, disse que os principais desafios do país já foram vencidos.  "Agora temos que trabalhar unidos para os desafios do desenvolvimento: desafios do combate à pobreza e da inclusão",

Baú onde pude preservar as memórias que me restam

Há 49 anos foi proclamada  independência de Angola: houve festa de arromba, de muita folia, música e diversão  pela noite adentro:  “Um dia de muita alegria e para mim um dia tão triste!” –. Desabafava  eu para o meu pequeno gravador, o meu diário de bordo, - Sim, pude testemunhar esse ambiente de entusiasmo e de grande esperança, algures no Golfo da Guiné, depois da meia noite e  por algumas horas  ao correr da  madrugada, ao sabor do vento e das correntes, perdido a bordo de uma frágil piroga; através de um pequeno transístor a pilhas, que pude preservar num simples contentor do lixo das constantes tempestades e das vagas que me flagelavam, além de um pequeno gravador onde fazia o registo do diário de bordo e da máquina fotográfica. Tenho ainda comigo esse registo histórico, bem como, de resto, as seis cassetes de todo o diário, das quais me venho servindo para  o transcrever


"Estive a ouvir a rádio até altas horas, até quase de manhã, sobre a reportagem da independência de Angola. Portanto, hoje é dia 11 em terra..." -Declarava para o meu diário de bordo: um pequeno gravador guardado num caixote de plástico, igual aos do lixo


Depois de uma fratricida guerra civil. entre filhos do mesmo país, além dos vários anos de uma guerra colonial, que tantas vidas acabaria por ceifar de parte a parte, Angola comemora hoje o 49ª aniversário da Independência, “numa altura em que há ainda graves problemas económicos e sociais por resolver, havendo entretanto a esperança de que os atuais governantes hão-de encontr
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Sim , há 49 anos foi proclamada independência de Angola: houve festa de arromba, de muita folia, música e diversão pela noite adentro: “Um dia de muita alegria e para mim um dia tão triste!” –. Desabafava eu para o meu pequeno gravador, o meu diário de bordo.

Naquela já distante manhã, de 11 de Novembro de 1975, em que se festejava a independência de Angola, enfrentei, em pleno mar alto do Golfo da Guiné e a bordo de uma frágil piroga de São Tomé, um violento tornado –- Mas tanto no dia anterior, como nos dois dias seguintes, que aqui recordo, vivi as mais díspares emoções - 

 E ainda havia à minha frente, mais 16 dias, até aportar em Bioko - ex-Fernando Pó - ao 38º dia, embora não muito longe da Ilha onde aportei – sim, ainda havia um longo calvário a percorrer, porque baldeado por tempestades e correntes dos mais diversos quadrantes. Aqui lhe deixo um breve excerto da minha voz em uníssono com a voz do mar - Extraído do meu diário de bordo, registado num pequeno gravador que pude preservar num modesto contentor de plástico, igual aos da recolha do lixo.  

A canoa foi carregada num pesqueiro americano para ser largada, na corrente equatorial, um pouco a sul de Ano Bom. Porém, à chegada a esta ilha, o comandante propôs-me abandonar a canoa e ficar a trabalhar a bordo, alegando que a mesma estorvava e que a aventura era muito arriscada

Na impossibilidade de ser levado para a dita corrente, decidi-me pelo regresso a São Tomé para tentar a viagem noutra oportunidade. Foi então que uma violenta tempestade, me surpreendeu em plena noite, tendo perdido a maior parte dos víveres, os remos e outros apetrechos.  Foram momentos indescritíveis. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é pois difícil imaginar pior adversidade. Tendo acabado por aportar, 38 dias depois, à Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó) onde fui preso e enviado para a célebre para prisão Black Beach a fim de ser executado por suspeita de espionagem - Tal não sucederia mais os dias ali passados, foram eternidades mais incertas que os vividos nas tempestades do mar. 


Um dos tubarões pescado

Diário de Bordo 1 - Já é manhã do 22º dia. Passei uma noite normal. Estive muitas vezes acordado. Não dormi assim muito mas não choveu. Estive a ouvir a rádio até altas horas, até quase de manhã, sobre a reportagem da independência de Angola. Portanto, hoje é dia 11 em terra.


Amanheceu uma manhã bastante agradável: o mar não está assim muito agitado e o céu não muito encoberto. Apenas umas nuvens de onde em onde.

Meus pais, que nunca os esqueci e cedo me deixaram
Eu disse, ontem, que, quando não se possuía uma boa vela, um perfeito domínio da embarcação, era preferível deixá-la à deriva. De facto, cheguei a essa conclusão, mas, atendendo a que devo estar muito próximo de terra e porque as correntes já não devem ter grande força, talvez valha a pena pôr à prova os modestos recursos que disponho.

Não podia deixar de me referir à companhia dos meus fiéis tubarões...continuam!...Isso é infalível!... A dar aqui as suas voltinhas, a fazer a sua escolta à canoa.

SENTIA-ME ARREDADO DE TUDO - O MEU CALENDÁRIO NO MAR ERA DIFERENTE DOS DIAS QUE CORRIAM EM TERRA

Diário de Bordo 2 - São mais ou menos oito horas da manhã do 22º dia, ou seja dia 11 em terra. Realmente experimentei a vela. Andei cerca de uma hora e tal, mas praticamente já não havia vento. Há uma calmaria muito grande. Tudo leva a crer que haja trovoada lá para o fim da manhã ou princípio da tarde. Oxalá que sim; uma trovoadazita até faz bem para acelerar o andamento da canoa, se não nunca mais saio daqui!... O problema é este: só há vento quando há trovoadas. O pior é que nessas circunstâncias é difícil navegar, porque há que ter toda atenção na segurança da canoa. Portanto, neste momento, limito-me a aguentar os balanços da canoa e o calor, que está já a fazer sentir-se, até que venha um bocado de vento, que, com certeza, virá acompanhado de alguma trovoada, que está já a formar-se ali para leste. Aguardemos.

Diário de Bordo 3 - Quanto ao meu estado de saúde, doem-me bastante as costas, o pescoço, tenho inúmeras borbulhas nos braços e nas pernas e a vista muita cansada de olhar para o horizonte e também dos reflexos do sol. De resto ainda não sinto qualquer perturbação: mas tenho aqui medicina, uns comprimidos e algumas vitaminas. Enfim, espero que não surja qualquer complicação no meu estado de saúde.

Estou ouvindo rádio, que uma vezes constitui realmente o meu passatempo favorito, outras, enfim, é o silêncio, a solidão única coisa que me agrada.

AO FIM DA MANHÃ, CONFIRMAVAM-SE OS MEUS RECEIOS - Surge a tempestade: o que eram sinais de velada ameaça, subitamente, transformam-se num afrontoso pesadelo - O mar!... O mar!... Quando se enfurece, o mar é sempre igual em qualquer parte.




Diário de Bordo 4- Neste momento estou a enfrentar violenta tempestade! Tive que lançar a âncora flutuante. A canoa correu sérios riscos!...Nunca estive em tantas dificuldades como agora!… mesmo assim o tempo acalmou ligeiramente, mas ainda continua a tempestade a sentir-se e arrastar-me agora de este para oeste!… Está a retardar novamente a minha viagem!... Devem ser aí umas 11 horas da manhã!…Estava uma manhã estupenda e, de um momento para o outro, apareceu esta tempestade que ameaça a todo o instante virar a minha canoa.

Diário de Bordo 5 -O mau tempo continua a fazer sentir-se!... Não sei qual o destino onde vou ter!… É difícil neste momento fazer qualquer prognóstico… É um tornado dos maiores que tenho enfrentado...E o pior foi encontrar a minha canoa na posição pior de segurança, porque, a canoa, tem uma posição em que pode enfrentar mais ou menos as tempestades...Tive que lançar a âncora e um bidão de plástico que força com que a canoa fique ligeiramente de proa à vaga…De qualquer modo, a situação continua melindrosa!... Agora não chove mas está a fazer uma grande ventania e o mar está muito cavado!... Estou a ser arrastado para Sul, portanto, estou a ser retardado!... As perspetivas de chegar a terra, estão a ser cada vez mais morosas. É realmente uma situação verdadeiramente dramática!... A canoa esteve há pouco à beira de se virar!... Só por muita sorte, só por milagre não se virou!...

NESTES MARES, EM QUE OS DIAS SE REPARTEM POR IGUAL COM AS NOITES, TUDO É SÚBITO E INESPERADO: Uma simples nuvem no horizonte num claro céu azul e limpo, tanto pode significar o princípio de uma tempestade, como de uma podre calmaria  - Agora, as alterações climáticas estão profundamente alteradas, em todo o planeta; não sei se, naqueles mares, para pior ou melhor - Mas há 44 anos, eu vivia ali um longo e tormentoso drama  Ao sabor dos ventos e das correntes e balanceado para todos os quadrantes. 

Diário de Bordo 6 - Sinceramente, o tornado já passou... Está agora a notar-se a ressaca... Estou bastante afastado da Ilha de Fernando Pó, muito afastado!...Estou convencido que não vou ter a oportunidade que já tive...Neste momento, não sei qual a minha posição; estou bastante para Sul!... Não sei se voltarei a ter a oportunidade que já tive!... Afinal o que me interessa é terra e eu parece que estou a brincar com o meu destino!... Não pode ser!... Estou francamente perturbado neste momento!... Vou ver se consigo conservar o máximo de calma!... Mas já estou saturado... Estou cansado... Estou com fome!… Estou longe de terra! Agora estou muito mais longe do que já estive!

Mais afastado de terra e fatigado.  Não estou desiludido ou desesperançado. Pelo contrário, sinto-me mais forte e mais habilitado. O mar já não é aquele lençol líquido rebelde e ondulante, a sua fisionomia está moribunda  e não demorará a quedar-se numa ténue e plácida superfície.

Diário de Bordo 7 - Duas horas já são passadas... Não há vento. O mar tem uma ligeira ondulação: está mais ou menos calmo... Depois de um grande susto e de momentos de grande aflição... Porque, de facto, a trovoada foi violenta e ameaçou a cada momento voltar-me a canoa, não tivesse eu lançado a âncora flutuante, aliás, que é um sistema que eu improvisei (com um bidão de plástico, amarado a uma corda e à proa da canoa, na primeira noite em que fui assolado pelo tornado, forçando-a a ficar de proa à vaga e que me fez perder o remo e o leme e alijar da maior parte dos alimentos, para evitar ir ao fundo)  mas cheguei à conclusão que posso muito bem dar a terra, à costa de África... Quer dizer...se não houver vento de sul para norte, não preciso de pôr a vela, porque a corrente me arrasta... Se a trovoada surgir de sul, ponho a vela e a canoa evolui para noroeste...portanto, para a costa de África. Cheguei também à conclusão de que, realmente, numa tempestade, a embarcação não pode ficar completamente à deriva; se ficar com a vela, furta-se às vagas e não se vira tão facilmente. Claro que a vela tem de ser pequena, porque, se for grande, pode-se voltar...Por exemplo, neste momento tenho a vela e a canoa está a evoluir para a noroeste...E é pena não haver um pouco mais de vento... Portanto, eu posso muito bem ir dar à costa de África, tanto à Nigéria, como ainda a Fernando Pó. Para ir a Fernando Pó, basta que eu ponha a vela, quando houver vento de sul para norte; não preciso de remo sequer; basta prender a vela; prendo-a e então a canoa desliza para nordeste

Neste momento, já estou mais otimista... Depois daqueles momentos de grande aflição, em que vi quase a canoa virada e tive que me deitar para um dos lados, porque a canoa esteve mesmo... Havia vagas grandes, alterosas!…Entretanto, lancei um plástico agarrado à âncora  (a âncora flutuante), isso fez força, esticou a corda e evitou que a canoa se virasse... A canoa, correu realmente o risco de se virar!... Ora isso não pode acontecer de maneira alguma... Aliás, uma pessoa, nestas condições, a cabeça tem que estar sempre a pensar!... Sempre a improvisar... Não podemos cruzar os braços perante o perigo...Temos que ter sempre ideias novas para fazer face a novas situações... Este é um predicado muito importante... Pois nunca se pode uma pessoa dar por vencida!...Pode chatear-se, saturar-se, enfim, desanimar um pouco, mas por vencida nunca se deve dar!... Eu, apesar de tudo, apesar de já estarem 22 dias passados, aqui nesta situação, verdadeiramente dramática, muito difícil, eu não me dou por vencido!... Eu sei que hei-de ir dar a terra, custe o que custar!... A menos que a canoa se parta, mas isso não há-de acontecer


Livros pouco tempo para os ler
Diário de Bordo - Um pormenor curioso: tem piada que tive uma manhã bonita, uma manhã de sol!...Estava eu a ler um livro: “A Funda” de Artur Portela Filho, quando comecei a ver nuvens escuras e a ouvir um murmúrio, um ruído enorme: vi logo que era vento!... Pois, mal dei aqui uma arrumadela à canoa, surgiu logo essa trovoada, e de que maneira!

O céu por cima da minha cabeça está praticamente desnudado. Mas não tem aquele tom luminoso de um puro azul, que me inspira alegria.  Está encoberto por uma fluidez baça, por uma película levemente brumosa e prateada. Porém, em toda a periferia do horizonte, notam-se altos cúmulos. Estas nuvens têm aspetos muito giros mas algo misteriosos e inquietantes que não me inspiram absoluta tranquilidade. Porventura, reservam-me alguma surpresa desagradável....Vivo numa verdadeira inconstância de altos e baixos...

Diário de Bordo 8 - São neste momento perto das quatro horas da tarde, sensivelmente. Agora há uma paz!... Há um silêncio...O mar está calmo, sereno!... Um verdadeiro contraste com o mar que há bocado estava..O céu tenuemente enevoado, o sol mal se faz sentir....Sinto-me absolutamente desprezado neste momento!

Sinceramente, estou saturado! Saturado, porque não estou a navegar, a fazer da canoa aquilo que eu quero...Estou à mercê do mar, dos ventos, das correntes, das trovoadas!... Sou para aqui aquilo que os ventos e as correntes quiserem!...Estou farto de vislumbrar o horizonte, em busca da desejada costa africana!... Vejo lá longe Fernando Pó...Se calhar tenho de ir para lá, porque, senão às tantas, nem para lá nem para outro lado!...

Sinto ao mesmo tempo uma réstia de esperança... Há bocado vi que a minha canoa podia-se ter voltado de um momento para o outro!... Correu sérios riscos!...Eu não perdi a esperança, apesar de tudo...Tenho tido bastante sorte, também....

Não há ninguém...Nem um barco de pesca, nem um barco!... Não vejo nada!… Nem aves, tão pouco... Nem peixes!... Apenas os tubarões, azuis e os martelos, continuam em volta...Mais nada!... A água tem uma cor escura!...Não sei que dizer mais... Esperar, até quando?!.. Esta ânsia!... Quando eu posso pisar terra firme?!...Quando?!...

Entretanto, tenho aqui o meu pequeno aparelho com o qual , quando tenho um bocadinho de disposição, me vou entretendo a ouvir música (ligo o pequeno rádio, aliás, à Rádio Nacional de São Tomé) - Neste momento está a dar música .Ouve-se aqui perfeitamente apesar da distância. Hoje tem estado a transmitir muitos trechos de música africana. Hoje é o dia da Independência de Angola. Um dia de festa para muita gente e para mim um dia tão triste!

NEM SEMPRE O NÁUFRAGO PODE DISPOR DA  COMPANHIA DOS SONS DE UM PEQUENO RÁDIO – ESCUTEI-OS, POR VEZES, ENQUANTO AS PILHAS, NÃO SE GASTARAM, DEFENDENDO DA VIOLÊNCIA DO MAR NO INTERIOR DO MEU BAÚ, UM VULGAR CAIXOTE DO LIXO  

 E foi desse modo que pude acompanhar o memorável acontecimento da celebração da Independência do Povo Angolano. Mas foram também os sons musicais africanos, esses sons pungentes de sofrimento, de alegria, amor e nostalgia, que falam sempre ao coração, e até os que escutava de Portugal, através da EN, que ora me conduziam a estados de paz e de tranquilidade, ora me  comoviam, fechando-me ainda mais no meu silêncio ou rompendo-o, em lágrimas e com as mil dúvidas e interrogações que então me assolam

Diário de Bordo 9  - Aqui...isolado há 22 dias!... Meu Deus! O mar às vezes é tão belo! Tão maravilhoso!...Outras vezes...Há uma solidão!... Eu não sei já o que sou, afinal! O que sou, afinal, eu?!...Sinto fome!…A alimentação tenho-a racionado!.. A água, há bocado, devido a atenção que tinha que manter, descuidei-me!.. Agora só tenho um bocadinho... Vou-me remediar e terei que beber água do mar...Meu Deus!...Até quando?!...

Construção da Cobertura  da canoa
O tornado deixara-me muito cansado e enfraquecido. Na noite anterior mal pegara no sono. À medida que se aproximava o fim da tarde - e ali, o sol ia pôr-se às cinco e meia - sentia-me invadido por uma profunda tristeza. E, nesse dia, chorei. Não direi que me sentisse derrotado mas estava muito triste. Muito abatido...É verdade que, no dia anterior, chegara a ter no horizonte a Ilha de Fernando Pó. Mas estava ainda longe, porque, se estivesse muito perto, não conseguiria distinguir se era uma linha da costa ou uma ilha. Pois a ilha ainda é grande. Mas deu para ver que era realmente Fernando Pó – a  Ilha de Bioko. Mas, a verdade seja dita, eu não desejava ir lá parar: receava que fosse preso; o regime era intolerante. Infelizmente foi para onde acabei por aportar. 

Entretanto, até lá, os tornados, haveriam de me balancear para os vários quadrantes do horizonte, sem todavia me arrastarem para qualquer recanto da costa. - Num fim de um dia de grande abatimento e solidão mas que, ao contrário de outros dias, me deu para exteriorizar longamente os meus sentimentos para o pequeno gravador. E até para verter as minhas lágrimas. Agora já com o pequeno rádio desligado:

Diário de Bordo 10 - Mas, oh mar!... Foste tu que me chamaste, afinal?!... Ou eu que sou louco?!.. O que foi afinal?!...Eu sinto qualquer coisa em mim!!... Qualquer coisa em mim!!...Não sei!.. Oh Deus!... Porque é que estou aqui, afinal?!...Mar!... Vastidão! Vastidão!... Só vastidão!!... Silêncio!...Lonjura!!... Só mar!... Mar!... Mar!... Mais nada!...Absolutamente mais nada!!!... Só mar!...Mar!...Eu e a minha canoa!... Só mar!mar!...

Oh mar! Fala!...Fala!!... Diz-me se posso chegar a terra!!....Quando?!... Hoje?!.. Amanhã?!...Nunca?!... Responde! Oh mar!....Agora tudo calmo!... (já não se ouvem os sons do pequeno rádio, que desliguei) Daqui a bocado, outra vez... Outra luta!.. Não me dá tréguas...Umas vezes assim, sereno!.. Outras tempestuoso!...Mas que será isto?!...

Peregrinando pelos arredores da minha aldeia
Fim de tarde!... Fim de tarde!... Quando a terra chegará?!...Perdido!.. Aqui!...Nesta vastidão! Nesta vastidão!!... Só mar, mais nada!... Absolutamente, mais nada!!... Agora, nem aves!... Silêncio!... Silêncio!... Onde estão as gentes, onde estão as pessoas?!... Onde estão os milhares de habitantes da terra?!... Onde estão os pesqueiros?!...Os barcos, onde estão?!... Sou eu que estou no mundo apenas!...

QUANDO A DESEJADA COSTA DE ÁFRICA? 


Ó meu Deus! Ajudai-me! Ajudai-me!... Continuai alimentar a minha esperança!... Apenas uma coisa  eu sinto!... O meu peito, o meu coração está livre de tudo! Ninguém me incomoda!...Ninguém me chateia, me pede satisfações!... Não tenho que dar satisfações a ninguém!... É a única vantagem que tenho... De resto...é o silêncio!... Silêncio!... Silêncio, apenas!... Silêncio!... (as lágrimas toldam-me de novo meus olhos)



Com o remo improvisado - Foto disparada com um barrote
no barco que me levou de canoa até Ano Bom, eu pensava demorar dois dias!.... Finalmente encontro-me há 22 dias.. Se tivesse ido para o Brasil, eu sabia que ia demorar dois meses, três meses. Eu estava mentalizado para isso. Eu iria, com certeza, com o leme, com as velas; iria ter domínio na minha canoa...Quando me decido pelo regresso a São Tomé, foi porque sabia que não podia fazer a viagem: a canoa estava com rachas, desequilibrada. Por outro lado, não era possível levá-la para as correntes. Portanto, estava mentalizado já para regressar a São Tomé. Entretanto, passaram dois, três, quatro, cinco dias!..Hoje?!....Amanhã?!... São 22 dias passados!... Umas vezes de indescritível alegria, prazer!... Outros de angústia, de aflição! De Verdadeira aflição!... Esperando a cada momento que uma onda me galgasse!



Eu vejo aqui em volta peixes que nunca vi na minha vida !...Sinceramente, não sei as suas intenções!...Sei que se caísse, cairia num domínio que não é o meu!...Estaria irremediavelmente perdido!... Cá ando, não sei até quando...

Mas tenho algumas culpas!...Eu poderia estar na Ilha de Fernando Pó, mas por teimosia minha decidi ir para a costa de África...Entretanto, as dificuldades estão a surgir... maiores do que eu previa!... E sabe-se lá se uma coisa ou outra eu poderei encontrar....Mas...Meu Deus!...No fundo de mim, no íntimo, alimento uma fé, uma esperança!... Até porque, se não tivesse a certeza de chegar a terra, naturalmente que já teria ficado noutro sítio qualquer...Porque eu já enfrentei tantas dificuldades, tantas tempestades!... Tantos maus momentos, que até agora tenho-os vencidos a todos!...Oxalá continue a poder resistir-lhes




-TARDE MORNA VAI MORRENDO – O sol, qual disco vermelho, ora a despontar ora a sumir-se por entre encastelamentos de nuvens escuras, desce vagarosamente a oeste sobre a curvatura do horizonte, espalhando tonalidades pálidas na leve ondulação, que mal se faz sentir. O ambiente que agora se espelha, bastante mais calmo – Mas oh que contraste com o mar revolto  e encapelado do princípio da tarde! -  É no entanto a imagem de uma imensa desolação e desamparo, mas, ao mesmo tempo, de profunda serenidade, inspiradora de deslumbradas e nostálgicas divagações. Onde as palavras aspiram à plenitude, os sentimentos procuram harmonizar-se entre o coração e a planura horizontal.

Diário de Bordo 12 - Fim de tarde do 22º dia. Que nome hei-de eu dar a este silêncio?!.... Um princípio de tarde agitado... E um fim de tarde morno, triste!...Em que até o sol brilha menos... Em que até o sol está menos luminoso, menos radiante!…O mar mais escuro... O céu mais cinzento... O horizonte mais limitado, mais circunscrito...Não é tão vasto!...O mar! uma vastidão!... Uma planura!... Apenas uma ligeira ténue brisa!...Umas pequenas ondulações!... Como que rugas de um manto imenso... Cinzento!.. Profundo!... Muito profundo!...

Olho para a minha canoa, que vejo?!... Tudo desarrumado!.. Dois plásticos: um com meio litro de água, outro vazio...Outro com algumas coisas dentro... As minhas pequenas roupas, estão a secar sobre as bordas da canoa...A canoa tombaleando...Ligeiramente... Levemente!... Sem fazer qualquer ruído, como que a enquadrar-se neste silêncio!... Neste mesmo quadro para não destoar...Quadro?!... Que nome eu daria este quadro?!... Não sei!...Agora, neste momento, o sol começa a despontar entre nuvens escuras!... À minha retaguarda sobressai um reflexo luminoso... de miríades!.. Um reflexo brilhante!... Lá!...Um peixe deu um salto. Outro voou!...

Para lá do oeste, nuvens escuras!... Mais escuras!...E o sol a surgir no meio delas como uma aparição!... Mas num brilho não tão radiante, não tão radioso como por vezes, o é!...Há um rasto luminoso atrás de mim!... Que ele provoca, como que a apontar-me, como que a dar-me uma réstia de fé, de esperança!...Tudo o mais é cinzento!... Tudo o mais é abandono!...Apenas o reflexo, este reflexo!...É doirado e prateado!.. Cheio de anéis de ouro!... A única coisa que brilha é o sol!... Esta réstia de luz que se estende dele até mim!...Tudo o resto é cinzento!... É abandono!... É esquecimento!...Vastidão!... Lonjura!... Distância!...Numa circunferência imensa!...Sem limites... Sem espaço!... Sem dimensão!....


SOB A CALMA E O SILÊNCIO DO ENTARDECER… Momentos para ouvir alguns sons africanos... Que se perdem na magia e tranquilidade da vasta planície oceânica.

Reina uma atmosfera serena e agradável. Respira-se um ar puro e tépido. Sinto-me absolutamente calmo, nada me perturba. Como se explica que, estando eu perdido no oceano e longe das vistas de qualquer outra presença humana, consiga superar ou esquecer, tão rapidamente, os momentos mais atribulados?... É um segredo que só o mar conhece ou quem, vogando à sua superfície, sinta profundamente todas as suas convulsões ou calmos espasmos. Não se consegue explicar por palavras. O meu espírito goza, de facto, neste momento, de uma quase sublime serenidade. Os sons que ouço fundem-se e refundem-se como ondas vibratórias, em sentimentos de verdadeira magnificência, plenitude e beleza.

 O fascínio do mar começou nesta Baía
Diário de Bordo 13 - Estou ouvindo música no meu pequeno aparelho... Música africana!.. Estou num local africano... próximo de África, onde os sons, são sons apenas!... Não há outros ruídos!...Estes sons chegam-me aos ouvidos, com pureza!... Com agradabilidade!....Com expressão!... Sinto-os!...Não ouço mais sons, senão apenas aqueles que são transmitidos pelo rádio...O som, aqui,  é mais agradável! É mais musical. É muito mais expressivo!...Sinto-o!... Vêm até mim!...Vêm ao meu peito!... Diz-me qualquer coisa!... É melodia!... É qualquer coisa que me diz!... Que me trás!... Que me alimenta!!... É alimentação... É, como que, comida!...

ENTRETANTO A NOITE CAI – E, NAS REGIÕES EQUATORIAIS, CAI QUASE ABRUPTAMENTE – TAL COMO A CORTINA QUE ENCERRA O FIM DE UM ATO NUMA PEÇA DE TEATRO - NÃO HÁ CREPÚSCULO –  A noite cai repentinamente e quase nem se dá por isso. É pois a hora de prestar atenção a outros sons e de perscrutar, atentamente, o que vai além do já quase ensombrado e escurecido horizonte

Diário de Bordo 14 - A Ilha de Fernando Pó está quase a confundir-se no horizonte...Está mais distante, mais cinzenta!...Sinto agora um ruído!!... Virá ele agora perturbar o meu silêncio?!... Agora tudo é mais sombrio, mais cinzento!… Nem o sol brilha!...Escondeu-se!... As nuvens esconderam-no!...Virá ele perturbar o meu silêncio?!... E depois disto o que virá?!... A noite, daqui a pouco, surge... Silenciosa ou tormentosa?!... Sinto que a canoa vai vagueando pela acção das correntes.... A correntes, que são invisíveis, mas que têm força!... Continuam a impeli-la...Agora para Norte!...Há bocado veio de Norte para Sul, impelida pela trovoada...Agora volta para Norte!...E assim ando, assim navego...

Treinos na canoa com que ligaria S.Tomé-Príncipe
Daqui a pouco é noite....Depois é tudo escuro!...Ficarei metido na minha canoa, deitado no fundo dela...De vez em quando, vigilante!...Observando o horizonte, a ver se vejo...Ah!, porque eu quero a costa de África!... Eu quero a misteriosa costa de África que custa a mostrar-se!... É o que me interessa!...

HORA DE BALANÇO DO DIA: Pouso o gravador para uma breve pausa. Tranquilamente  e a meditar nas palavras que registei. Que parecem ainda ressoar-me aos ouvidos numa animadora e reconfortante esperança. Tanto mais que os ruídos que julgava ter ouvido  há pouco, afinal não terão passado de ecos dos sons do rádio, como que  a repercutirem na minha mente ou como, se porventura, ecoassem dos  confins do espaço. Depois é altura  de fazer o balanço: do que ainda me resta e do que o mar me levou, questionar as desilusões e de acalentar novas esperanças. E de me lembrar da carta marítima oferecida pelo cantor francês Antoine


 

Diário de Bordo 15 - Não trouxe carta nenhuma para me orientar. Aliás. tenho um esboço, uma cópia de uma carta marítima de correntes e ventos, entre a África e o Brasil, na faixa do equador e na qual estão apontadas as Ilhas de Ano Bom, São Tomé e Príncipe e Fernando Pó (Bioko). Mas isso é uma coisa muito rudimentar, não é muito pormenorizada. Uns traços apenas, algumas indicações muito ligeiras. Essa cópia foi-me oferecida pelo cantor francês Antoine, quando passou por São Tomé, no seu veleiro, com o qual anda a dar a volta ao mundo. Farto-me de olhar para esse bocadinho de papel  vegetal e chego à conclusão de que realmente estou próximo. Muito perto!....Porque será que custará então a descobrir?!... Essa é a interrogação que eu tenho.... Da outra vez, quando fui para a Nigéria, ao fim de treze dias eu estava lá!....Claro que tinha leme, podia navegar com a canoa conforme queria. Podia conduzi-la pela orientação mais desejada. Agora não o tenho mas já tenho utilizado  a vela, e, com o remo que improvisei, a canoa já tem andado bastante!... Já são 22 dias passados... Claro que venho de mais longe!... Mas já era tempo de chegar à costa de África. 

Disponho de duas bússolas a bordo: uma que posso fixar na canoa, a outra que trago permanentemente no pulso...Este é que é o meu relógio, é o que me interessa... São os pontos que me interessam!... A direção norte interessa-me...A nor-noroeste, também...Neste momento, as horas para mim não contam... Conta apenas a direção que a canoa leva e mais nada!... E é para esta bússola, que eu trago sempre no pulso, que eu olho permanentemente...De resto, as horas para mim não contam!

MAIS UMA NOITE LONGA – SIM, DURANTE A NOITE, AS HORAS CONTAM – E, POR VEZES, NÃO SÃO HORAS MAS  ETERNIDADES!

Diário de Bordo 16 -Já é praticamente noite do 22º dia. Apenas se vê no horizonte uma língua de fogo a assinalar o crepúsculo....O Céu apresenta-se completamente coberto de nuvens cinzentas, um bocado espessas para sudoeste, o que indica que iremos  ter chuva esta noite, de bom lado... Quer dizer, de sul para norte...Se vier com esta direção, favorece. E vou dar uma arrumação à canoa a fim de ver se passo mais uma noite...

Eu não perdi a esperança, apesar de tudo... Esperar!... Até quando?!..
...


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