Jorge Trabulo Marques
Algures no Golfo da Guiné, 9 de Novembro de 1975 - Ainda pela frente mais 18 dias
r)
O contentor onde pude guardar o gravador e máq. fotog |
Diário de Bordo – 1 É manhã do 20º dia. Já estou mais a Norte da Ilha de Fernando Pó, agora completamente descoberta. Portanto, estou aproximar-me da costa de África, mas ainda tenho um bocado a percorrer. O céu, a leste, apresenta-se bastante encoberto, e, do lado oeste, tem algumas nuvens, o que tudo indica que vai haver chuva. Pelo menos à noite. – Estas as minhas primeiras palavras, vertidas, de forma pausada e denotando um certo abatimento, para o meu diário de bordo, registadas num pequeno gravador, guardado da fúria das ondas, no meu baú, um ex-contentor do lixo
Diário de Bordo – 1 Esta noite apanhei uma ave que tinha pousado sobre mim. Tenho-a aqui para a depenar daqui a bocadito... - (Confesso que era o que mais me custava: sacrificar as avezinhas que me serviam de companhia - Além disso, eram só ossos. Mas a necessidade, assim me obrigava).
Como não chove, só estou a consumir água do mar!... Não sei a que distância me encontro de Fernando Pó. Sei que estou muito próximo (quem está perdido no mar, o que parece perto, nem sempre é o que parece). mas não me interessa ir para lá, de maneira nenhuma!... (e tinha razões para não aportar lá) Como tal, vou aqui a permanecer deitado no fundo da canoa.. – Mas por pouco tempo, as condições atmosféricas, agravar-se-iam e voltaria a ser balanceado ao sabor de mais uma tempestade.
A canoa, fotograficamente falando, talvez possa parecer-lhe um iate - Sim, de 60 cm de altura por 1 metro de largura. Um pedaço de um tronco escavado, mais ou menos comprido, com umas ligeiras coberturas laterais e uma pequena ponte à proa e à popa
SENSIVELMENTE A MEIO DA MANHÃ – DEPOIS DE UM TORNADO - Fazia o balanço do dia:
Diário de Bordo 2 – Hoje já tive muito trabalho!... De manhã cedo, estava muito próximo de Fernando Pó, entretanto, surgiu um tornado que me aproximou mais, depois afastou-me para Oeste!... Estou-me ainda a afastar!...Convenci-me que não tinha outra hipótese senão ir dar lá, mas felizmente que coloquei a vela e estou a afastar-me nitidamente da Ilha de Macias. Portanto, estou a dominar perfeitamente a minha canoa, depois de ter enfrentado mais um temporal!... Não foi muito violento, mas, enfim, deu-me algum trabalho. Neste momento, estou a dirigir-me para a Nigéria. Espero lá chegar hoje, com certeza.
Com a chuva, desta manhã, consegui arranjar mais provisões de água. Portanto, esta manhã, já me consolei com água doce, água das chuvas!...Estou mais satisfeito, pois já não tinha água nenhuma. Já estava a beber água do mar!... Enfim, tudo vai andando com um bocado de sorte, felizmente
Diário de Bordo 3 . As aves estão aqui a voar ao meu lado!... Sinceramente, agrada-me a cor desta água. Uma cor diferente!... Um azul límpido, transparente!...Tudo indica que não devo estar muito afastado da costa...
As aves continuam aqui a sobrevoar o mar ao meu lado e à minha frente. Parece que querem acompanhar a minha canoa!...Os peixes, todos acompanham o ritmo do seu andamento... Enfim, tudo parece ir pelo melhor caminho!... Ainda não vislumbrei contornos de terra, o que, aliás, é compreensível, visto que a costa é normalmente baixa e só quase se avista, quando se está sobre ela, mas não devo estar longe.
NOVO ATAQUE DE PERIGOSO TUBARÃO
Diário de Bordo 4 – Neste momento, a canoa voltou a ser investida por um grande tubarão!!... Já lhe dei umas tacadas com o remo e espero que ele me deixe em paz e se afaste!... É realmente um tubarão grande! Ele ainda anda aqui, talvez próximo da canoa!..
.
Diário de Bordo 5 – Já vi aqui alguns paus!... São vestígios, normalmente de aproximação de terra. Mas a água mantém-se com a mesma cor... isto é, de um azul clarinho, embora com muita carneirada... Aguardemos, enfim, que a desejada praia chegue à vista.
Diário de Bordo 6 – Devem ser três e tal da tarde deste dia 20. Tive que tirar novamente a vela, pois o mar apresenta-se bastante cavado, não há vento e tornava-se bastante difícil velejar... Continuo, portanto, à deriva, já que não há outra solução. Com o leme (que lhe adaptei e perdi) , talvez pudesse fazer qualquer coisa. Tenho um remo tosco, uma coisa improvisada, que quase não serve para nada!.
Imagem registada num certo dia ao pôr do sol
Diário de Bordo 6 Agora deixaram-se de ver as aves, pelo menos aqui nas cercanias... Ainda não vislumbrei qualquer contorno da costa africana... É uma costa muito baixa!... Já da outra vez, quando cheguei à Nigéria, apenas a avistei a uma duas ou três milhas. Desta vez, com certeza, vai ser a mesma coisa....É difícil o equilíbrio na canoa. O mar está muito cavado, muito agitado!..
Tive que lançar hoje à água o peixe que tinha pescado ontem por já cheirar mal. Não foi preciso utilizá-lo porque tinha ainda o fígado do tubarão, que comi. Mas, se for necessário, pesca-se e come-se peixe. Por enquanto, ainda tenho alguma comida. Não é muita mas ainda há alguma!... Quanto a água, arranjei mais um pouco das chuvas, que, misturada com a do mar, resolve o problema.
Diário de Bordo 7 – Seguidamente, vou-me entreter a comer qualquer coisa. Tenho muita fome!... Realmente, o apetite é bastante!...
ARRASTADO POR VÁRIAS HORAS POR EXTENSO CARDUME – DESDE O MEIO DA TARDE PELA NOITE A DENTRO
Diário de Bordo 8 – Neste momento, grande cardume de peixes! Estou envolvido num grande cardume de peixes! É indescritível uma coisa destas!... Há-os por todos os lados! Formam uma verdadeira corrente!...Não sei que possa ser isto!... Peixes!... São peixes!... é um cardume!.. São cardumes! Fazem autênticas vagas! Eu não compreendo isto!... É uma coisa estranha! Absolutamente estranha! O mar ficou agitado! Completamente agitado com tanto peixe! A minha canoa continua a tombalear!... É uma coisa que eu não percebo! Nunca vi tal fenómeno!... Os peixes são em quantidades monstras!... Paus, também, entre os peixes!... Agora dirige-se novamente para cá!... Ah!... Não posso!... Agora tenho de tomar cuidado com a minha canoa!...
Diário de Bordo 9 – Este ruído que se ouve são as vagas produzidas pelo cardume!...Enorme!... Que tem uma extensão de mais de uma milha, talvez. É um fenómeno curioso este ruído (fervilhar) que continua a ouvir-se... Modificou a fisionomia do mar, completamente!... Faz vagas como se fosse uma tempestade! É uma coisa que nunca vi!... Estranho não haver aqui aves, porque normalmente há aves quando aparecem cardumes. O mar toma uma agitação de ondas de todo o tamanho!... Pequenas! Grandes!.. Todo em turbilhão! Num autêntico turbilhão!...
Diário de Bordo10 – Ainda estou no meio do cardume! O cardume voltou para trás e voltou a cercar-me!...Os tubarões devem estar a ter um belo prato!... Nem num tornado teria tantas dificuldades de me equilibrar de como agora!...Prolonga-se por uma área enormíssima!... A canoa tem maior velocidade! Simplesmente há vagas que a galgam! É realmente um espectáculo!... Parece que me quer levar a terra; não me larga!...
Diário de Bordo 11 – Já passou mais de uma hora sobre o seu aparecimento e eu já andei mais em distância do que se tivesse sido arrastado por um tornado. O seu maior comprimento está no sentido poente nascente e a sua largura no sentido Norte/Sul. Umas vezes descai para Norte outras vezes descai para Sul. E eu estou a ser arrastado a uma velocidade impressionante!...Verifico pela posição da Ilha de Fernando Pó... Não há dúvida nenhuma que parece que foi Deus que veio ajudar-me a sair deste lugar, porque, hoje, já fui retardado por aquele tornado de manhã!...Fui muito puxado para Sul!... Agora estou a ser puxado nitidamente para Norte!...Umas vezes estou no meio dele, outras fora dele!... É coisa esquisita mas curiosa ao mesmo tempo!... Parece que há uma divindade!... Há algo superior que me está ajudar!... O cardume parece que tem alma! tem vida!...É impressionante!... Tem vida o cardume!... Parece que os animais têm descrição!.
Diário de Bordo12 – Louvado sejais meu Deus!... Será Deus que me mandou este cardume para me ajudar?!... Para me salvar?!...O cardume continua... é já noite!... E ele a fazer-sentir! Umas vezes descendo para Sul outras vezes avançando para Norte e a canoa deslizando... Agora, num movimento suave!...Há muitas ondas que às vezes tentam galgá-la, mas ao deleve! Vai até num movimento mais equilibrado. É curioso!... Há qualquer coisa de especial nisto...
FINALMENTE, LÁ CONSEGUI LIBERTAR-ME DO CARDUME, COLOCANDO A VELA
Diário de Bordo 13 - Neste momento, são cerca das dez horas da noite. Estou a navegar à vela. À minha retaguarda, a Sul, parece haver formação de uma tempestade qualquer. Depois de algumas horas, envolvido no cardume, lá consegui afastar-me, graças à ajuda da vela e do remo improvisado. Não é nada prático. É extremamente difícil navegar nestas condições. Estou com uma atenção muito grande na bússola, que tenho aqui à minha frente, porque isto tem que ter o máximo de exatidão a fim de me aproximar quanto antes!... Ao meu lado , tenho o rádio (pequeno transístor a pilhas) com o qual tenho escutado a Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe...Com certeza que só poderei navegar mais uma hora porque as condições não são nada favoráveis.
Diário de Bordo 14 – Realmente é uma situação muito difícil esta em que me encontro agora empenhado. Para dar equilíbrio à canoa é um caso sério! É preciso um sacrifício enorme!... Ainda não comi mais nada...Estou cheio de fome!... Mas, efetivamente, quero libertar-me aqui disto, porque é uma chatice...Está para ali a formar-se um temporal à minha retaguarda, não me apanhe!...Mas, enfim, se me apanhar, ao menos seja em boa posição da canoa...Por vezes, é desfavorável..
Diário de Bordo 15 - A canoa ficou atravessada na corrente e agora é um caso sério para conseguir... Mas já está quase!... Os relâmpagos estão-se a ver... Portanto, é natural que, lá para a meia-noite, venha a ter aqui uma chuvazita... O mar está a ficar um pouco mais difícil. Até agora tenho navegado .Havia uma aragenzita e o mar estava calmo.
Há luar! O céu está descoberto, pelo menos aqui nesta zona... Lá um pouco mais para a leste é que há nuvens e uns relâmpagos. Deve estar a formar-se para ali uma trovoada, com certeza.
Vejo as estrelas perfeitamente... É muito agradável!...Mas era bom que tivesse o leme (ou o remo); prendia-o ou amarrava (a cana do leme) e navega de qualquer maneira... Assim, ando para aqui... desengonçado... É uma chatice... Enfim, vai-se fazendo o que se pode.
Há bocado o cardume deu-me que fazer.... Ah! mas também favoreceu, favoreceu!...Deu um bocado de andamento à canoa.... Oh santo Deus! Como é que eu consigo?!...Outra vez a atravessar-se!....
Ver a lua é agradável!... O pior é se vem para aí alguma chuvada!...Põe isto numa banheira!... Daqui a pouco vou fazer umas papitas com água do mar
""Diante de mim, a escuridão. A voragem que não tem cimo e que nem sequer tem margem" - Victor Hugo
Diário de Bordo 16 – Não sei que horas são neste momento. É noite do dia 20 para o dia 21. Acabei agora de apanhar uma chuvada!... Estive a tirar a água da canoa, porque estava toda alagada!...Está escuro! Muito escuro!... Não sei... mas devem ser aí uma duas da manhã...Estou aqui com uma lanterna... A canoa estava alagadíssima!... Portanto, neste momento, não me posso deitar... Tenho de estar a ver se a canoa seca um pouco... Mas a chuva continua a ameaçar! Continua a relampaguear e a trovejar! ... É o resto da noite de vigília!...
O mar, até ao momento em que choveu, estava muito agitado; agora já está mais calmo... É uma noite bastante chata, esta.... O trovão, lá longe!...Os relâmpagos... É aventura, propriamente dita.
Diário de Bordo17 – Um pormenor que já ficava por dizer: é que eu reforcei as minhas provisões de água. Apanhei mais um bocado de água das chuvas para beber...Portanto, neste momento já não preciso de água do mar.
Nenhum comentário :
Postar um comentário