Jorge Trabulo Marques
Algures no Golfo da Guiné, 17 de Novembro de 1975 - Há 49 anos
Continuo sem pescar e guardar o tubarão que pesquei, já estragado - Bastante me custa sacrificar as minhas únicas companheiras - as duas aves - que vêm pernoitar na minha canoa ... Mas oh maldita fome! A que crime me levaste!
Diário de Bordo - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto, tenho que me valer destes recursos
Diário de Bordo - 3 Os trabalhos que acabei de executar, são trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder a isto e evitar que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...

Estou realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui esfomeado!...Enfim!...
As correntes mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à Nigéria mas aos Camarões.
Diário de Bordo - 5 "Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite..."
Diário de Bordo - 7 Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... (..) Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...
Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das águas, brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar ainda mais visível a face conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro horizonte que me envolve, que continuam a revelar-se, como olhos de assombrosa e velada ameaça!.. .
Sim, alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! - Ondulam nervosas e escuras águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso; nem tão pouco posso dormir nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza, a canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra de cada onda do imenso manto tumultuante. Sei a direção que toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.
Sozinho, apreensivo e triste, lá vou balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem poder dormir, lá vou velejando, impossibilitado, mais das vezes, de o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.



A que enseada de águas calmas, límpidas e profundas, a que bom porto de abrigo ou praia de areia fina, a minha canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa, promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a ser atirado e despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a tão desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão viçoso e perfumado, a tão ansiada terra firme?!..
Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...
Dez dias depois, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.
Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago, acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o meu aspeto, magro, atormentado, queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!...
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Âncora flutuante |
Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...
Dez dias depois, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.
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