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sexta-feira, 15 de novembro de 2019

26ª Dia no Golfo da Guiné - Não tenho água potável... e, todavia, tanta água à minha volta!...Tanto espaço, tanta liberdade e tanto azul a inundar-me os olhos!...Tanta coisa em excesso e tanta coisa em falta!... – Que suplício!... Que tormento mais duro, meu Deus!... Até quando?!....

"Estou a beber água do mar. Sinto-me um bocado fraco...Vou suportando, com um bocado de paciência até ver... Já estive à pesca mas não pesquei nada..."

Algures no Golfo da Guiné, 15 de Novembro de 1975 - Há 44 anos - 26 dias a sobreviver no mar dos tornados, das calmarias e dos tubarões - Mas ainda tinha pela frente mais 12  dias até aportar à antiga Ilha de Fernando pó, atual Biko  -

Jorge Trabulo Marques - Jornalista, investigador e navegador solitário

Mar sonoro

"Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

Sophia de Mello Breyner Andresen



Sem água potável e sem comida!... 
Às desoras da noite eu ouvia 
a voz do vento a chamar-me e sem cessar!...
Sem cessar!... E a mandar-me esperar!... Esperar!?...
Naquele turbulento, ondulante e fundo mar!... 
Sozinho no seio das trevas mais fundas !
Sob o espesso teto de errabundas névoas!...
 À flor das vagas, do abismo negro sem fundo!
A coberto dos infinitos e escuríssimos céus!...
Abandonado e esquecido de todo o Mundo
menos sem a Luz da Fé e da Esperança de Deus. 


Ó MISERICORDIOSO CRISTO! - OH O DOCE E  CRUEL TORMENTO! 
MEU CORPO MORTAL ENCAIXADO NUM EXÍGUO ESPAÇO E COM A SEPULTURA SEMPRE AO MEU LADO

Monteverdi - Si dolce è 'l tormento






douradas mordicando as lapas da canoa
Sê Integro, pacifico e verdadeiro – Mas não conivente com as injustiças … E, se não puderes seguir o exemplo e os passos daquele que se deixou matar  em nome da sua palavra, ao menos constrói o teu altar em lugar abençoado e escolhido por ti – Sê paciente mas não resignado e  não te importes de levar com persistente tenacidade a cruz que terás de levar até ao fim da tua vida. Pois este mundo é apenas uma mera passagem veloz e fugaz

PERDIDO NO MAR - Não tenho água potável... e, todavia, tanta água à minha volta!...Tanto espaço, tanta liberdade e tanto azul a inundar-me os olhos!...Tanta coisa em excesso e tanta coisa em falta!... – Que suplício!... Que tormento mais duro, meu Deus!... Até quando?!....
A pouca água do mar
que bebo aos golinhos de vez em quando,
em vez de matar-me a sede,
ainda mais agrava o meu mal-estar
e torna muito penosa, demasiado penosa,
talvez mesmo impossível, a minha sobrevivência!...
Mesmo assim, não me sinto desanimado!...
E vou lutando com os precários meios que disponho
e conforme posso... Mas já não chove há uns dias!...

Pela primeira vez na minha vida masquei
uma lasquinha de madeira como um chiclete!...
Arranquei-a da borda da canoa...
Tinha a garganta tão queimada e a boca
já tão ressequida e os meus lábios tão secos,
que a sede se me tornava já um suplício insuportável!...
E, com o sol tão intenso, até parecia que o desespero
começava a tomar conta de mim!...
Com a sua frescura, consegui aliviar
um pouco o meu tormento!...- Mas é cruel!
É terrível a sede!... – E nenhuma nuvem no céu!!..
Até este ar quente já me sufoca!...
Tenho que voltar a beber mais uns golinhos de água do mar...
A ver se aguento...

Oxalá venha uma grande chuvada!...
Mas geralmente surge quando menos se deseja
e quase sempre antecedida de fortes ventanias
e agitação das águas!... – É assim o tempo
nesta região do oceano!... – Podres calmarias...
que até parecem eternidades por tão prolongadas e mortas!...
Logo seguidas de grandes tempestades que, de tão rápidas
e enfurecidas, parecem destruir tudo à sua à sua passagem....

Não tenho água potável... e, todavia, tanta água à minha volta!...
Tanto espaço, tanta liberdade e tanto azul a inundar-me os olhos!...
Tanta coisa em excesso e tanta coisa em falta!... – Que suplício!...
Que tormento mais duro, meu Deus!... Até quando
?!.

Excerto do poema SÓ A VOZ DO MAR.. 
 
Peregrino da Luz, da Terra e dos Mares- Esta foi mais tarde outra navegação nas penedias da minha aldeia



Algures no Golfo da Guiné, 15 de Novembro de 1975







Diário de Bordo  -

1  É manhã do 26ª dia que viajo numa canoa. Passei uma noite quase sempre acordado. Havia ameaças por todo o lado. Travejou mas na canoa não choveu. Eu precisava que chovesse.
Esta manhã ainda se apresenta bastante cinzenta, com nuvens espessas no horizonte. O mar muito cavado, com bastante carneirada! Muito agitado!...Continuo sem ver quaisquer contornos de terra...Não tenho comida e não tenho água senão do mar.
 
Entretanto, vou ver se pesco mais qualquer coisa.... Não tenho outro recurso senão pescar. Quanto ao facto de beber água salgada, sinceramente, já há quatro dias que o faço e  o estômago já não está lá muito bem!...Sinto dores  de cabeça. Tenho assim umas certas perturbações... Efetivamente, pode beber-se água do mar mas durante um determinado período de tempo.

Diário de Bordo  - 2  São 10 horas da manhã. O mar apresenta-se bastante azul mas muito cavado! Com vagas bastante fortes!... Está com aspeto bonito, as vagas muito azuis e brilhantes, mas está ao mesmo tempo perigoso, na medida em que provoca na minha canoa movimentos desencontrados... E, por vezes, chega a galgar o próprio interior da canoa.




Entretanto, vou ver se pesco mais qualquer coisa.... Não tenho outro recurso senão pescar. Quanto ao facto de beber água salgada, sinceramente, já há quatro dias que o faço e  o estômago já não está lá muito bem!...Sinto dores  de cabeça. Tenho assim umas certas perturbações... Efetivamente, pode beber-se água do mar mas durante um determinado período de tempo.
Diário de Bordo  - 2  São 10 horas da manhã. O mar apresenta-se bastante azul mas muito cavado! Com vagas bastante fortes!... Está com aspeto bonito, as vagas muito azuis e brilhantes, mas está ao mesmo tempo perigoso, na medida em que provoca na minha canoa movimentos desencontrados... E, por vezes, chega a galgar o próprio interior





(imagem fotográfica da popa da canoa e do caixote de plástico, onde pude guardar a máquina fotográfica e um gravador, com o qual fiz o registo do meu diário - as partes arrancadas, foram utilizadas para construção de um remo improvisado - Na imagem de cima, registada com uma das mãos, estou bebendo golos de água salgada)



Diário de Bordo Desde ontem que deixei de ver os tubarões, os meus fiéis companheiros, digamos, assim, tubarões martelo. E a verdade é que hoje já tive aqui a visita de um tubarão dos escuros!, que é o voraz que costuma atacar a canoa e que andou aqui às voltas. Um tubarão muito grande! Um tubarão gigante!...Realmente, não sei porque é que os outros deixaram de aparecer...Espero não vir a ter problemas com estes.
Não posso colocar qualquer vela neste momento, é demasiado perigoso!...É preferível deixar a canoa andar à deriva, apesar, de, enfim, ser muito arriscado...De qualquer maneira prefiro ir assim, até porque não tenho perfeito domínio da minha canoa, visto não ter leme e o remo principal.


Já choveu aqui na zona, próximo!...Aqui apenas chegaram umas pequenas gotículas... Trovejou mas nem sempre quando troveja chove em toda a parte do mar.... O mar está fortemente agitado!, devido às trovoadas que se desencadearam  noutras   partes...Noutros lugares.... Não consigo ver qualquer sinal de terra. Deixei  completamente de ver a Ilha de Fernando Pó (Bioko)...Farto-me de mirar  o horizonte para noroeste, mas não há qualquer sinal.
 Não tenho comida. Água também não tenho. Estou a beber água do mar. Sinto-me um bocado fraco...Vou suportando, com um bocado de paciência até ver... Já estive à pesca mas não pesquei nada...Continuo aqui com o tubarão... Já ontem aproveitei um bocado dele mas hoje já tem um aspeto um bocado deteriorado...Vamos lá a ver...Vou conservá-lo de qualquer maneira. Pois, se não pescar outra coisa, vou aproveitá-lo...Fome é que não hei-de passar... Enfim, alguma hei-de passar mas guardo-o até ver....


A canoa continua a meter água da parte da carlinga...Não sei porquê... Continua a meter cada vez mais água; isso preocupa-me imenso, porque, realmente, não sei até que ponto  se pode manter ou agravar.

Diário de Bordo  - 3 São 3 ou 4 horas da tarde. Direi que o mar continua muito agitado, bastante mesmo agitado!...É quase difícil equilibrar-me na canoa... As trovoadas ameaçam de todos os lados!... Devem estar muito próximas... Devo ser atingido, dentro de pouco tempo por alguma trovoada...Ainda não vi terra... Tenho fome. Sede também,  porque ainda não choveu... Deve chover daqui a pouco, com certeza.... A situação é bastante incerta!... O mar bastante agitado e difícil. A canoa continua a meter água!... Realmente, é preciso ter uma moral e uma confiança muito grande! Para conseguir levar a bom termo a minha empresa....Os tubarões martelo já apareceram! Vi dois ou três.

 Aliás, eu esta tarde coloquei um bocado a vela mas tive que a tirar porque era impossível continuar a velejar!... A canoa ameaçava virar-se a todo o momento.... Eu não tenho leme ( nem remo adequado) e tive que deixar-me andar de novo à deriva! À mercê das vagas e daquilo que elas quiserem fazer de mim.



Diário de Bordo  - 4 Devem ser cerca das 5 horas da tarde do 26º dia. Finalmente, surgiu uma chuvada!...Não direi uma trovoada, embora o mar esteja bastante agitado mas não houve muito vento...Choveu bastante!...Consegui arranjar aí uns seis ou sete litros de água!...Portanto estou satisfeito!...Já tenho água doce...Aliás, tinha aqui uns produtos químicos que me foram oferecidos  pelo Sr. Dr. Epifâneo da Franca, em São Tomé, os quais adicionei para fazer água doce. A água das chuvas é água destilada, é água pobre. Consegui, portanto, arranjar água doce!... Estou mais satisfeito, porque com água potável é possível sobreviver  durante mais tempo...Muitos dias!...Quer dizer, sem água não é possível sobreviver muito tempo. Sem comida é que se pode sobreviver mais dias....Portanto, eu tendo água posso sobreviver à vontade, aliás, eu vou pescar...Ainda tenho o tubarão, o qual vou comer cru; não tenho outra hipótese...

O fim de tarde está brusco, o mar está muito cinzento. Está agitado, com certeza. Cheio de carneirada (de lembrar que o sol, nestas regiões equatoriais, nasce e põe-se à mesma hora - às 05.30;17.30) A trovoada já passou. Aliás, apareceram duas chuvadas, uma vinda do sul, outra vinda do norte. Os ventos dominantes continuam a sentir-se para nordeste, o que facilita bastante...Estas trovoadas agitam bastante o mar, pois dão mais velocidade à canoa...Espero que não esteja já muito afastado...Aliás, não sei porque é que, depois de ter visto Fernando Pó, esteja a demorar tanto tempo em relação ao que demorei desde lá de baixo (da Ilha de Ano Bom, onde fui largado). Já estou mais satisfeito, estou mais otimista!..Vamos ver como é que vou passar a noite...

Agora não desejo a chuva...Enfim, quero passar uma noite agradável... Está molinhando ainda mas isso há-de passar . Porque, o mar, aqui,  quando vem uma trovoada, fica muito agitado, mas um bocado depois já está calmo...

Ainda não há qualquer vislumbre  de vestígio de terra !... Mas... eu não devo estar  longe, com certeza....Estou animado, sinto-me mais satisfeito!... Há bocado, estava  um bocado aborrecido porque não tinha água!... Estava a beber água do mar, água salgada, claro. Também não tenho comida. A comida que disponho é só do tubarão (já estragado) mas lá me hei-de remediar...

Continuo a ver aqui debaixo da canoa, uma barracuda. As barracudas também são perigosas!.... (Barracuda).Os tais tubarões martelo, desopilaram; não sei para onde é que foram...Portanto, é tudo por agora.

  Diário de Bordo  - 5 Aliás, poderei dizer que a canoa está toda molhada, encharcada mas o que me continua a preocupar é a entrada da água pela carlinga (o buraco onde assenta o mastro), visto os pregos terem atingido o fundo. Portanto, a madeira foi apodrecendo e a água continua a entrar. Mas espero que aguente até chegar a terra.

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