Algures no Golfo da Guiné, 18 de Novembro de 1975, há 29 dias - - Mas ainda tinha pela frente mais 9 dias até alcançar chão firme
"Bem sei que
estou endoidecendo.
Bem sei que
falha em mim quem sou.
Sim, mas,
enquanto não me rendo.
Quero saber por
onde vou"
Fernando
Pessoa - 15-9-1934
"MAR PORTUGUÊS"

São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!" - Fernando Pessoa
MESMO QUE NÃO CHOVA A CANOA METE SEMPRE
ÁGUA POR ALGUMAS FISSURAS E PELA CARLINGA, ALÉM DE ALGUMAS VAGAS QUE A TREPAM
Diário de Bordo - 1 É manhã do 29ª dia. Ainda não tive tempo de comer qualquer coisa. A manhã amanheceu brusca. De noite não choveu. Não há sol. Está um tempo enevoado e há um vento no sentido de oeste este.
Coloquei a
vela para tirar partido deste vento, que parece estar a dar resultado. Veremos
como é que será o dia de hoje....Aliás, já avistei contornos de África, desde
ontem e se não fosse o tornado, com certeza que estaria já muito próximo, pois
o tornado é que veio desfavorecer a minha aproximação.

Diário de Bordo -3 É provavelmente
meio-dia do 29º dia. A manhã esteve bastante trovejada, choveu! A canoa ficou
toda alagada!...Agora está enxuta e já volta haver uma certa calmaria. Não há
vento. O céu está nevoado... Sinto fome!... Comi um bocado de tubarão mas sinto
fome!...O tubarão sabe-me mal... Sinto uma certa fraqueza...
![]() |
Meu Baú - Caixote do lixo onde guardei o gravador e máq. fot. |
Voltei a ver a Ilha de
Fernando Pó no horizonte. O horizonte ficou descoberto depois da chuvada e
avistei ligeiros contornos da costa de África....
Entretanto, depois da chuvada, estive a fazer uma limpeza da canoa. Deixei-a limpa, sem água e pus a roupa a enxugar. A canoa, neste momento, está um estendal autêntico! Com tudo a enxugar!... A aguardar, com certeza, outra chuvada (sorrio), que entretanto é capaz de aparecer.
Entretanto, depois da chuvada, estive a fazer uma limpeza da canoa. Deixei-a limpa, sem água e pus a roupa a enxugar. A canoa, neste momento, está um estendal autêntico! Com tudo a enxugar!... A aguardar, com certeza, outra chuvada (sorrio), que entretanto é capaz de aparecer.
Âncora flutuante |

Os
meus tubarões martelo continuam a guardar a canoa...Os outros, por enquanto
ainda não apareceram.


Diário de Bordo - 4 Serão neste momento umas quatro horas da tarde do 29º dia. A tarde tem estado muito serena. O mar apresenta-se ligeiramente ondulado. O céu coberto com uma ligeira neblina. No horizonte há nuvens que o limitam mas onde posso vislumbrar outros contornos da costa africana...Não totalmente, mas já se vislumbram perfeitamente, quer para norte quer para noroeste. Vê-se também a Ilha de Fernando Pó. Claro que só a parte mais alta... A Ilha de Fernando Pó (Bioko, situada na Baía de Biafra ) é muito alta. Tem picos com mais de 2000 metros de altura (Pico Basilé – com 3011 m de altitude).
Passei a tarde a ler...Claro que tenho fome,
evidentemente, mas procuro esquecer esse aspeto, ouvindo rádio...Música
africana... Estou a ouvir rádio, enfim... a divagar.

Eu ainda não fiz referência à noite passada: passei uma noite todo encharcado! Envolvido num plástico mas por fim até adormeci e sonhei..Sonhei e tive uns sonhos muito esquisitos, acordei a falar!...Supondo que tinha chegado realmente a terra. Tive assim sonhos muito esquisitos...

À medida que o tempo ia passando, as vagas fortes iam
avançando contra a canoa!...Eu via que a canoa, apesar dessas impetuosidades
não se virava! Eu ia ficando mais tranquilo!...Mas sempre à espera!... À espera
que alguma vaga mais alterosa, com maior força, me pudesse voltar a canoa...Eu
não tinha qualquer hipótese!...Vi um tubarão grande! Enorme! Ás voltas da
canoa. parecia que estava adivinhar que a canoa se ia voltar!...Mas isso,
felizmente, não sucedeu! Não sucedeu!... Porque, eu apesar de tudo,
também mantive a minha calma! Fiz tudo por tudo por enfrentar a situação...Sim,
realmente, uma pessoa nestas condições, nunca pode cruzar braços!...O nosso
cérebro tem que estar sempre a pensar! Sempre a pensar!...Sempre a pensar em
novas coisas!... Em poder dispor dos modestos recursos precários que
tenhamos connosco.. Essa deve ser a preocupação dominante.

Diário de Bordo -7 Neste momento é já noite. Aparece ali a lua-cheia à minha frente!...Mas, tenuemente, visto fazer uma certa neblina... Confesso que estou satisfeitissímo! Os dois peixes souberam-me que nem um pato!...Comi a carne deles crua e gostei! Gostei realmente!...E cheguei à conclusão que é melhor crua de que assada em álcool. Os dois peixes deviam pesar aí 200gramas. A carne era saborosa! Tinham a pele muito dura e foi preciso esfolá-los primeiro. Portanto, o novo anzol resultou. Aliás, eu insisti várias vezes, pois os tipos, cada vez que lançava o anzol, iam à procura da isca, comiam-na e não fiavam lá... Finalmente caíram!
A noite
apresenta-se plácida! Absolutamente serena! O mar é um mar chão! Não há vento
nenhum. Mas também não há calor...Corre uma ténue aragem apenas..
.Eu devo estar
muito próximo da costa de África...Estão a reluzir os contornos...Por este
andar, amanhã devo estar muito próximo, a menos que apareça alguma trovoada a
puxar para outro lado....Mas não deve haver esta noite ou amanhã, com certeza,
porque hoje não fez sol. Hoje o dia esteve brusco...Portanto, não houve
evaporação... É capaz de não haver nenhuma chuvada! E, se houver, é muito
fraca...Normalmente as trovoadas seguem-se a quando há períodos de sol...
Aparece logo uma trovoada ou um tornado.

Daqui
a pouco vou-me deitar no fundo da canoa... O estômago é que não ficou assim
muito bem...Estou satisfeito mas o estômago, com esta dose de carne, que não
estava habituado...
Tenho ainda ali um bocado do tubarão, que já está estragado, mas só o guardo para iscas para apanhar outros peixes, porque já não presta; já não está muito bom....Estou mais animado, visto estar próximo de terra e também por poder dispor de peixe aqui à volta de mim.
Tenho ainda ali um bocado do tubarão, que já está estragado, mas só o guardo para iscas para apanhar outros peixes, porque já não presta; já não está muito bom....Estou mais animado, visto estar próximo de terra e também por poder dispor de peixe aqui à volta de mim.
Tinha dado tantas voltas à cabeça...Tinha inventado tantos
processos!... Pus um anzol num pau. Experimentei tanta coisa e não
resultou...Finalmente, lá encontrei um outro anzol mais pequeno e a coisa com
esse anzol deu mesmo efeito. E ainda bem!... E que o mar fosse sempre assim...Com
esta calma, com esta aparência tranquila...Ah! era muito agradável!... Mas o
mar de vez em quando mostra a sua face!...O mar tem muitas faces...Uma face
serena!..Suave!...Ondulante!..Depois, grave!...Violenta! Tempestuosa! Essa é
que é a face mais dura!...Escura!... Torrenciosa!... Agora a noite no mar
... mantém-se plácida... A canoa, claro, desequilibrada, está
sempre a tombalear, o que é bastante chato, visto ter esse defeito. Se não
fosse isso a coisa era melhor.
Há
um pormenor muito importante que ainda não registei: é que eu tenho
medicamentos a bordo..Tenho vitaminas... Claro que isso não dispensa a comida
mas dá muito jeito. E isso graças à boa colaboração do Dr. Epifâneo da
Franca. Que me resolveu realmente um grande problema...Até para a água
doce...Quer dizer, eu apanhei água das chuvas.. Ele tinha-me arranjado um
preparado químico, com o qual podia fazer água potável. E isso deu resultado. E
ainda bem que contei com essa preciosa ajuda.


Fui marinheiro mas também o poeta do sentir.
Quis sentir, com todos os meus sentidos e até à flor da pele
e à flor do oceano
- olhos, língua, olfato, estômago, veias e tato,
na brisa marítima
que respirei e na própria água salgada que bebi,
no deslumbramento
das tardes serenas e noites plácidas de luar
ou mesmo no
assombro da fúria das tempestades que vivi
- sustos,
inquietações que o meu coração ainda hoje perpetua -
todas as
emoções possíveis e imagináveis - E entendi
que só nos
horizontes esbatidos da imensidão do mar,
perdendo-me
livremente à superfície das suas vagas,
no contínuo
enrolar das soltas ondas, sobre a crista
ou no fundo da sua
cava, as poderia sentir e encontrar.
++++
"Ah, quando
nos fazemos ao mar++++
Quando largamos da
terra a vamos perdendo de vista.
Quando tudo se vai
enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se
torna uma linha sombria,
Nessa linha cada
vez mais vaga no anoitecer (pairam luzes) -
Ah então que
alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver
razão para existir socialmente.
Não há já razões
para amar, odiar, dever.
Não há já leis,
não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só mar a
Partida Abstracta, o movimento das águas.
O movimento do
afastamento, o som
Das ondas
arrulhando à proa,
É uma grande paz
intranquila entrando suave no espírito."
Álvaro Campos
(Fernando Pessoa)
"Sente-se
palpitar o coração do Oceano
Que
pela lua tem um coração humano.
(...)
E
nas correntes d'ar que as ondas arrefecem
Vibram
as sensações que os nervos estremecem
Teixeira
de Pascoaes
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