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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

32º DIA - Diário de Bordo - Vi duas baleias na altura da trovoada. Muito próximas! Mas isso não me assustou... O que me estava a preocupar era realmente o tempo que a trovoada estava a demorar... Pois espero que me tenha favorecido...

Jorge Trabulo Marques  - Algures no Golfo da Guiné, 21 de Novembro de 1975 - 

Três dias depois, registaria estas palavras  no meu diário, num  pequeno gravador que logrei preservar bum vulgar contento de plástico, igual aos do lixo 35ºDia - Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa.(....)  que está cheia de água!...(..) Há uma fraqueza geral em mim.. Não sinto nada no estômago... É um saco de fole...Mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável. https://canoasdomar.blogspot.com/2012/12/35dia-acordei-com-o-barulho-de-uma.html

Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade - 



Diário de Bordo 1 Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado



Diário de Bordo - Vi duas baleias na altura da trovoada. Muito próximas! Mas isso não me assustou... O que me estava a preocupar era realmente o tempo que a trovoada estava a demorar... Pois espero que me tenha favorecido... Continuo a não desesperar ... mas estou cansado!... Tenho fome! Muita fraqueza!... Estou a aguentar... Estou tentando... Estou tentando não me precipitar... Por suportar isto com serenidade.

De qualquer modo, o esforço tem sido insano. O meu coração teve que aumentar o ritmo das suas pulsações. Os meus pulmões, o meu cérebro, em suma, todo o meu organismo, não se poupou a um trabalho exaustivo, quase sobre sobre-humano. Ainda bem que apanhei o coco. Apareceu em boa hora. Pois não sei o que seria de mim se não o tivesse achado. Até parece que foi uma dádiva providencial a permear  a heroicidade da minha luta e do meu combate. Fosse como fosse, veio em boa hora. Primeiro extrai-lhe a casca com o machim, depois fiz-lhe um furo no extremo e levei-o imediatamente aos lábios para lhe aproveitar a água. Pouca mas muito saborosa!... Soube-me muito bem. De seguida, e após me ter deliciado com tão divino néctar, foi a vez de me servir da sua amêndoa - Eis como exortei com esse momento:

A aurora mal começara a irromper,  já eu me remexia no fundo da canoa e me levantava para avaliar as condições atmosféricas do novo dia. Ontem, quando me deitei, já a horas tardias, ainda caíam alguns chuviscos, esperando, todavia, que, ao amanhecer,  o tempo se recompusesse - Vejo, porém, que o tempo continua instável; encontro-me envolvido num autêntico inferno cinzento. Estou para aqui todo encharcado, devido aos balanços desatinados deste madeiro flutuante,   que me arrasta não sei para onde, sobre um mar exaltado de espuma 






O MAR NUNCA SE DESLIGA DAS PRAIAS - POR ISSO, CONTINUO A CONFIAR QUE ELE ME ARRASTE PARA UM DOS SEUS MISTERIOSOS RECANTOS..

Do que observo à minha volta, disso vou dar conta no meu diário gravado, cujo gravador  voltei a retirar do meu baú de plástico, um velho caixote do lixo

 Diário de Bordo  De noite choveu ligeiramente. O mar, a partir de certa altura, mostrou-se cavado. Ainda tentei pôr a vela. mas, tive que voltar a tirá-la, visto estar bastante agitado

Esta manhã verifiquei a existência de pequenas ervas. Paus... dejetos de  aves...Também observei a passagem de uma garça...Portanto, tenho a impressão que realmente estou muito próximo  da praia.


Já comi qualquer coisa. Aliás, comi a ave que ontem apanhei. Não tenho já o estômago vazio... Entretanto, logo que chegue a terra, terei que arranjar outra coisa... Para já, estou um bocado otimista!... Vou pôr a vela... O mar está cavado!... Mas vai permitir a colocação da vela.... Portanto, com um bocado de dificuldade, vou ver se consigo apressar a minha aproximação... até à costa africana.... Claro que de manhã é difícil  ver os contornos de terra... Só de tarde é que me  é possível.... De manhã o horizonte apresenta-se sempre com uma certa neblina. É impossível ver-se.... Mas tenho um pressentimento de que não estou muito afastado.

A única obsessão que me domina neste momento é imaginar-me a arrastar a canoa  sobre a areia quente e macia de um qualquer recanto da costa, ladeado pelos frondosos e esbeltos coqueiros,  com a suas frondes debruçadas sobre as águas límpidas e cor de esmeralda ou por uma espessa floresta de abundantes e frondosas árvores tropicais, onde possa saciar-me de saborosos frutos. 

Não me desagradava que não vivesse lá ninguém. Pelo contrário, até desejava que isso acontecesse. Pois não me importaria de viver a experiência que viveu o lendário Robinson Crusoe . Apreciei muito as façanhas relatadas por  Daniel Defoe. É um livro maravilhoso, que persegue o meu imaginário desde a minha juventude... Acho que é o maior sonho de qualquer náufrago, que se perca nas águas quentes do Atlântico, do Pacífico ou do Indico: depois de sobreviver às mil adversidades do mar, que este ao menos o conduza ao encontro  de um pequeno paraíso, solitário e tranquilo, onde possa restabelecer-se dos tormentos por que passou.  .Mas, por agora, essa imagem idílica não passa de um sonho


 As ondas continuam muito feias, a fustigar-me  a canoa numa dança, quase de enlouquecer. Sinto-me fraco e trémulo da fome e do cansaço. Não é possível ter um sono reparador. Os enormes chapes, chapes, na madeira, acordam-me, e, por vezes, até me cortam a respiração.  Se  não é a chuva, são os constantes safanões e batidas  das vagas sobre o costado da canoa. É depois o consequente chincalhar da água que se acumula no fundo, que entra pelas rachas e que não me dá descanso. Pois, de volta e meia, lá tenho eu de pegar no vertedouro. 

Quando o mar está mais bravo, é impossível adormecer. Sempre que preciso de me movimentar para qualquer trabalho ou acudir a esta ou àquela necessidade, cambaleio como uma bêbado Água para beber, das chuvas, não me tem faltado. Ainda se dispusesse de pesca ou de alimentos, mas não  tenho nada para comer, com que matar a fome...  A ave que, ontem apanhei, já a  comi mas só era pele e ossos. Oh. mas não posso desistir. Mesmo sem remo adequado, tenho que me esforçar por navegar. Sei que é uma luta tremenda, mas lutarei enquanto puder!...Só Deus sabe, porém, o meu esforço..  Nas calmarias fico imobilizado, e, quando o mar está agitado, torna-se muito difícil navegar.

Diário de Bordo 2-Coloquei a vela, durante cerca de três quartos de hora, mas devido à violência do mar - pois as ondas estão bastante alterosas - é impossível continuar  a velejar!... A canoa ameaça virar a cada instante... Cá ando à deriva... Talvez até chegar à praia!.... Realmente, faz-me passar tantos trabalhos!... Parece impossível!... Não havendo qualquer trovoada, o mar estar assim nesta situação!... O vento não é muito mas o mar está agitadíssimo!

Já vi aqui a existência de mais alguns paus, bambus, manchas...  Mas não vejo ainda quaisquer contornos da costa africana. Pois há muita neblina no horizonte, lá longe... De qualquer modo, tenho um pressentimento que me estou a aproximar.... Sinceramente, o mar aqui está muito bravo!... O mar aqui está realmente difícil! Com ondas fortes!  



Impedido de velejar,  procuro um pouco de descanso mas não consigo ter o mínimo de condições. A bem dizer, já nem sei que posição me será menos incómoda. Deitado, fico com as costas doridas e, se me sentar, com  as nádegas numa chaga, devido à humidade e outras pústulas que me apareceram nas partes, se me sento, torna-se-me um tormento, insuportável... Indo de pé, sinto tonturas e é demasiado arriscado, porque as pernas fraquejam-me e falta-me o equilíbrio. Por isso, que alternativas poderei eu então escolher?!... Bom, embora não sendo lá muito confortável, resolvi pôr-me de joelhos. 

Com as mãos agarradas às bordas da canoa e com a barriga dobrada sobre uma das travessas, até para tentar atenuar a dor e o enorme vazio que me vai no estômago, enquanto, por outro lado, os pés e a parte das pernas, vão sofrendo uma permanente e desagradável maceração, devido à salmoura que se acumula no fundo da canoa e que não pára de chincalhar. Se a canoa navegasse normalmente, não sofreria tantos  embates das vagas. Mas. à força das suas constantes investidas, já  rachou em várias partes. A água entra por essas  rachas e outra salta dos vagalhões que rebentam contra os bordos. À medida que me aproximo da costa, o perigo é cada vez maior. 

Ao largo, o mar enrola, sobe, eleva-se em alterosas montanhas, ondula, num sob e desce permanente,  mas não provoca tanta rebentação. Sim, a maior ameaça não está no alto mar mas na aproximação à terra. Então, se houver uma tempestade, o perigo ainda é maior! Mais difícil se torna o equilíbrio. Vamos lá a ver em que circunstâncias me poderão aproximar. Por agora, o meu pensamento, não vai tanto para os inúmeros perigos que me rondam, mas para a  sua fragilidade. Estas são, pois, as interrogações e as preocupações que me acodem ao pensamento e que vou transmitir  para o pequeno gravador.

Diário de Bordo 3 - Espero que a minha canoa, continue a portar-se bem. Pois, como já disse algumas vezes, está desequilibradíssima! O que me tem dificultado sobremaneira a minha viagem... Mas... há outro pormenor importante, é que ela mete água! E cada vez mete mais água!... Tem várias rachas! Está estalada!.. Enfim, espero que até à praia ela ainda resista....



ARRASTADO SOB O EFEITO DE UM BRAÇO DA CORRENTE DAS CANÁRIAS QUE BORDEJA A COSTA DO BIAFRA 


Diário de Bordo  4 A direção que estou a tomar é completamente diferente do habitual.... Estou a navegar no sentido de oeste para este... Quer dizer... as correntes aqui têm outra direção... Aliás, eu já esperava... que junto à costa tivesse outra direção... Estão quase acompanhar a costa... Portanto, vão retardar a minha aproximação.... Tenho cá um pressentimento que vai ser arrastada  para aos Camarões.... Porque a canoa está a derivar muito para leste. É natural que isso aconteça. Esperemos...

.Não podendo colocar a vela,  acabo por me deitar. O espaço físico é estreito, olho o imenso céu mas sinto-me ao mesmo tempo como que um prisioneiro encarcerado. Flutuo  sobre um vasto abismo, certamente agora já não tão profundo, como lá mais para sul,  mas, se a canoa rachar completamente e se partir, é o bastante para me engolir e me afogar.


Todavia, há que manter a serenidade  e não desesperar. Tenho que me abstrair e saber  preencher o tempo, as longas doze horas do dia. Trago alguns livros mas agora não os posso ler.... Doem-me muito as costas e os balanços não me permitem que me entregue  a leituras. Só posso divagar o espírito. E é o que vou fazer, servindo-me do pequeno rádio, que guardo no meu baú - Do qual também retiro o modesto gravador para registar mais umas breves palavras..



.Diário de Bordo  5 Entretanto, indiferente à bravura do mar... estou aqui deitado no fundo da canoa, ouvindo música de estações africanas - O meu pequeno transístor ainda resiste, as pilhas vão ficando fracas mas ainda o posso sintonizar em várias emissoras africanas.

.Infelizmente, não foi por muito tempo. No começo da tarde, o tempo refrescou, o céu cobriu-se de negras nuvens, que trouxeram  fortes chuvadas, deixando-me completamente extenuado. A chuva costuma quebrar o ímpeto das ondas, mesmo assim,  o mar enfureceu-se. Tenho lutado sempre por viver mas agora depois de mais estes dolorosos tormentos, sob forte chuvada torrencial, perpassa pela minha mente, alguma resignação. Estou profundamente extenuado. Sinto-me mais morto de que vivo. Completamente encharcado, com a água ainda a escorrer-me  pelos cabelos e pela barba. Sou para aqui  um fantasma de mim próprio. Não faço ideia que hora sejam.


.UM COCO PRODIGIOSO VEIO PARAR JUNTO À CANOA E MATAR-ME A FOME .....



Diário de Bordo  6 Não sei neste momento que hora serão...Serão já umas tantas da tarde.... A verdade é que, desde há quatro horas, enfrentei sucessivas trovoadas!....O mar, como não podia deixar de ser, ficou bastante agitado! A canoa sempre a encher-se de água!... Fiquei todo alagado... Estava convencido de que estava muito próximo de terra.... mas neste momento não sei onde me encontro!... Não sei se a trovoada me favoreceu nem senão...Já estive a limpar a canoa... Agora deixou de chover!... Há uma ressaca que se continua a verificar.... Tive a felicidade, digamos assim, de encontrar um coco!... Foi uma sorte para mim... Vi vários mas só pude apanhar um! E creio que foi um autêntico milagre!... Vou aproveitá-lo, pois tenho muita fome!...



No mar vi vestígios de óleo... que me dão a impressão de não estar muito longe de terra... A verdade é que foi um dia exaustivo!... Estou exausto!!...Estou cansado!... O mar deu-me muito trabalho!... As vagas muito fortes! E a chuva torrencial!!...Durante quatro ou cinco horas não parou de chover!... Não sei se ainda voltará a chover... Neste momento, não está a chover....





SABOREANDO O COCO DIVINAL..

Diário de Bordo 7 Já estou a comer o coco, meu Deus!... Mas que coisa tão saborosa!... Tão maravilhosa!... Isto foi Deus!!... Isto foi Deus que mo ofereceu!... Eu vi-o realmente à distância!... Eu não acreditava que ele passasse junto da minha canoa!... E veio mesmo ter à minha canoa!... Um belo coco! Tinha água... e tem uma bela amêndoa!  Estou a comê-lo!... Estou a tentar matar a fome com ele!... Para mim foi a melhor oferta!... Não podia ser melhor coisa.... este coco!... Não sei donde ele veio! Mas a verdade é que .... veio ao meu encontro! Ele veio ajudar-me! a preservar a minha vida!... Estou muito satisfeito por este coco!...

 A satisfação mistura-se com uma comoção que raia as lágrimas. E, à medida que o vou comendo, com insaciável apetite, no meu espírito reforça-se a imagem de que foi a mão de Deus que finalmente se lembrara de mim, Por isso, ao mesmo tempo que  o reparto por bocadinhos, que avidamente vou levando à boca e mastigo, com a outra seguro o gravador, como que possuído por  um crescente e comovedor fervor religioso, para que tão sublime momento, não deixe de  ficar registado à posteridade.

 Diário de Bordo  Estou comendo o coco! Avidamente!... Sofregamente!... Digam lá o que disserem!... Neste  mar!...(choro) Infinito!... Um coco vir-me parar às mãos?!... Isto é obra de Deus!!!... Isto é obra de Deus!!... Não é outra coisa!... Meu Deus!.. Tem-me ajudado muito! Até para enfrentar estas vagas!

Sim, e, com o cair da tarde,  atrás de  enormes vagas, outras vagas  alterosas, vão sucedendo, descomunais e loucas! Crescendo e avançando em tenebroso carrossel, cuja escuridão não tardou que tomasse conta de céu e do mar. Tornando a solidão à minha volta, ainda mais sinistra e negra. Nem sequer me permitindo descortinar os  contornos da própria canoa. Sim, tão intensa é a sua ondulante negridão!... No entanto, mesmo diluído nas suas sombras, não  me sinto perdido nem desesperado. Invade-me uma sensação de profunda melancolia.  Sou como que possuído por uma espécie de sentimento sobrenatural  de aceitação mas que me obriga a ficar em permanente estado de vigília.  O  mundo para onde estou sendo arrastado é um mundo de trevas, convulsivo e fantasmagórico! Não é possível ser descrito por palavras: é  mundo intemporal.... Noite  tormentosa, infinita!... Agitação! Escura noite! Imensidão!.. Nuvens cerradas, espessas e baixas, que parecem tocar as montanhas e os contornos das não menos escuras águas!...   Não sei como lutar porque tudo quanto possa ameaçar-me, remove-se em torno de mim na mesma imensa negridão!.. .Sei apenas que não posso desistir de viver e, por isso, vou continuar atento enquanto o meu coração palpitar.



           A minha canoa mantém-se imperturbável...
               Está totalmente alheia à grande incerteza
                  e aos muitos fantasmas que me povoam a alma...
                      À inquietude que absorve o meu coração.
                         E voga pelo negrume varrido  da noite
                            como se nada tivesse a temer!...
                                É admirável a sua altiva galhardia!  
                                    Parece conduzida por uma estranha força
                                        que a leva a um  ponto preciso da vastidão!..
.
              
      
 Mas, oh Deus!  Eu queria dormir!...
             Necessitava de descansar, adormecer!...
                  Cair em sono agora e acordar ao amanhecer!
                         Ser como o rude barqueiro,
                               que ao fim de uma longa jornada,
                                    dura e sem descanso,
                                         encosta o seu barco à margem e dorme...
                                            embalado pelo sussurrar da ramagem que o envolve!...
                                                  Mas aqui, é o mar a bramar! a bramar!...
                                                       É  o mar sem fim e sem fundo!...
                                                             Não há margens, nem portos de abrigo!..
                                             
                                                                        É a noite eterna!... É um  outro  mundo!..


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