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domingo, 24 de novembro de 2019

Perdido no Golfo da Guiné - Terra à vista: 35º Dia - "Sim, realmente, já não tenho a menor dúvida de estar numa enorme baía!... Baía ladeada de altas montanhas!... Mas quase sempre escondidas...Estou exausto!...Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa.. Estou fraco!... A canoa está cheia de água!... Há uma fraqueza geral em mim.. Não sinto nada no estômago... É um saco de fole...Mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.

                     Algures no Golfo da Guiné, 24 de Novembro de 1975

Perfis de terra - Eventualmente de novo Fernando Pó

Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade, 

Trinta e cinco dias  nesta trágica  odisseia é realmente muito tempo, para não dizer que é uma eternidade. Não sei, não faço a menor ideia até quando poderei continuar a resistir a este duro e tormentoso desafio.



Diário de Bordo 1 Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado

Sim, tal como  desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico  que se vê na imagem (a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço,  Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era, supondo que tivesse sido apanhado pelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o  rugido e o cheio  nauseabundo a peixe , fez-me  logo pensar que era um enorme  cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros  da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas  mais fundas dos abismos. Não sei como a não a escaqueirou. Deu uns valentes esguichos e até ainda  me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha,  mas a tresandar a uma podre maresia. 
Ainda o vi mergulhar e desaparecer. Levantou-se, deu uns sopros e umas borrifadelas, seguidas de alguns rugidos  e mergulhou outra vez, da mesma maneira e no mesmo sítio onde se levantou - Mais parecia um mostro pré-histórico, que subitamente havia emergido do fundo dos tempos ou um negro e volúvel submarino vivo, que, depois de errar no seu alvo, se ergueu com a cauda assente nas águas e o focinho nos ares, estrebuchou, guinou, mergulhou e desapareceu.

Não é a primeira vez que  se levantam junto à canoa. Mas desta vez, corri o risco de ser abalroado.  Foi mesmo muito rentinho.... Tive muita sorte!... Mas elas são cautelosas e eu até gosto de as ver - Deus as proteja dos assassinos que as pescam e de forma tão bárbara; se calhar veio por curiosidade para  ver que estranho  corpo era o da canoa, que tem o costado como a barriga dos  peixes. Ainda por cima de um  azulado claro  - Um gesto amável dos pescadores do Hornet, nos dias que passei a bordo do pesqueiro americano, de São Tomé a Ano Bom, onde fui largado - Foi pena não ter sido na corrente equatorial, um pouco mais a sul,  mas, enfim, estava escrito que deveria ser este o meu destino. . Estava pintada de alcatrão, pelo pescador santomense, que a talhou num tronco da floresta  - Se tivesse mantido a mesma cor, certamente que não teria sofrido tantos ataques dos tubarões, atraídos que são por tudo quanto se movimente, brilhe ou branqueie. Não sei se é por esta mesma razão que à volta da canoa, há  quase sempre peixes das mais variadas espécies -  e sobretudo muitos  tubarões pequenos. Felizmente que os perigosos gigantes, solitários, que a atacam, são mais raros. 



 Solitário e sem destino, sob um céu cinzento e deserto de uma manhã  brumosa, envolta por um horizonte encoberto  por densas névoas e por saturadas neblinas,  povoado  por silenciosos e enigmáticos sortilégios - Ó abençoada claridade das madrugadas, que sucede à cerração impenetrável das trevas, às longas horas de espera,  aos infinitos momentos de angústia e resignação! Afável serenidade, confiança e audácia  do meu ser, que me iluminas e abraças!... Vagueando esfomeado, transitório e frágil à superfície de um ondulante e vastíssimo manto de lívidas ondas,  que os turvados céus tingem e confundem, vogando à superfície  de um mar brumoso e infindo. 

Não choro o meu abandono, porque, apesar da  incerteza que me domina, vogando à deriva na vasta solidão que me rodeia,  dentro de mim não há lugar nem para  a derrota nem para o desespero; ainda vibra o silêncio que acalenta e não esmorece.  Subsiste   a intacta e vital vibração  da  esperança que não falece, que transforma o sofrimento em vitória. Porém, oh, Deus!... Vós, que até agora me acompanhais, lá do alto, que certamente olhais  os imensos caminhos da  minha náutica e errante aventura, sabereis, com certeza, a dor que   vai  dentro da minha alma!...   O quanto está   debilitado e  enfraquecido o meu corpo, quanta incerteza  vai o meu coração! E qual o peso do calvário por onde me arrasto e vou sendo arrastado.




Algures no Golfo da Guiné, 24 de Novembro de 1975- Há 44 anos

"O horizonte está brumoso. vejo para lá, de uma densa neblina, uns recortes escuros. Não sei bem o que será. Umas vezes parecem-me nuvens escuras e encasteladas, , outras vezes fazem-me lembrar  perfis de montanhas. Oxalá seja terra".


Diário de Bordo 1 Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas a noite passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado.

Sim, tal como  desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico  que se vê na imagem (a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço,  Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era, supondo que tivesse sido apanhado pelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o  rugido e o cheio  nauseabundo a peixe , fez-me  logo pensar que era um enorme  cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros  da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas  mais fundas dos abismos. 

Não sei como a não escaqueirou a canoa. Deu uns valentes esguichos e até ainda  me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha,  mas a tresandar a uma podre maresia. Ainda o vi mergulhar e desaparecer. Levantou-se, deu uns sopros e umas borrifadelas, seguidas de alguns rugidos  e mergulhou outra vez, da mesma maneira e no mesmo sítio onde se levantou - Mais parecia um mostro pré-histórico, que subitamente havia emergido do fundo dos tempos ou um negro e volúvel submarino vivo, que, depois de errar no seu alvo, se ergueu com a cauda assente nas águas e o focinho nos ares, estrebuchou, guinou, mergulhou e desapareceu.


Diário de bordo 1 - Tenho a impressão que estou realmente próximo da costa africana e parece que já vejo até os contornos....Simplesmente, neste momento, não há vento!  Há umas nuvens  espessas sobre mim que cobrem completamente o céu! Tudo faz prever que venha a chover!
Estou com muita fome!... Bastante fraco!... Sinto realmente uma fraqueza muito grande no corpo!... Dor de costas! Dor de estômago!.... Mas estou a ver se aguento com toda a paciência estes sacrifícios todos!

Diário de Bordo 2 - Sim, realmente, já não tenho a menor dúvida de estar numa enorme baía!... Tenho a impressão  de estar numa enorme baía, cercada por terra por todos os lados menos por um!... Se vier um bocadinho de vento é natural  que possa ir lá a ter depressa.

Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade.
Trinta e cinco dias  nesta trágica  odisseia é realmente muito tempo, para não dizer que é uma eternidade. Não sei, não faço a menor ideia até quando poderei continuar a resistir a este duro e tormentoso desafio.

Solitário e sem destino, sob um céu cinzento e deserto de uma manhã  brumosa, envolta por um horizonte encoberto  por densas névoas e por saturadas neblinas,  povoado  por silenciosos e enigmáticos sortilégios - Ó abençoada claridade das madrugadas, que sucede à cerração impenetrável das trevas, às longas horas de espera,  aos infinitos momentos de angústia e resignação! Afável serenidade, confiança e audácia  do meu ser, que me iluminas e abraças!... Vagueando esfomeado, transitório e frágil à superfície de um ondulante e vastíssimo manto de lívidas ondas,  que os turvados céus tingem e confundem, vogando à superfície  de um mar brumoso e infindo. 

Não choro o meu abandono, porque, apesar da  incerteza que me domina, vogando à deriva na vasta solidão que me rodeia,  dentro de mim não há lugar nem para  a derrota nem para o desespero; ainda vibra o silêncio que acalenta e não esmorece.  Subsiste   a intacta e vital vibração  da  esperança que não falece, que transforma o sofrimento em vitória. Porém, oh, Deus!... Vós, que até agora me acompanhais, lá do alto, que certamente olhais  os imensos caminhos da  minha náutica e errante aventura, sabereis, com certeza, a dor que   vai  dentro da minha alma!...   O quanto está   debilitado e  enfraquecido o meu corpo, quanta incerteza  vai o meu coração! E qual o peso do calvário por onde me arrasto e vou sendo arrastado.

A cor do mar  ondula lânguido e oleoso. Mudou nitidamente de um azul escuro para um esverdeado sujo. Ora isto pode ser na realidade sinal de que já me encontre próximo da grande embocadura do Golfo onde as águas vêm concentrar toda a espécie de despojos, sedimentos e porcarias. E os fundos nesta zona são relativamente baixos. Por isso, pelo aspeto da água do mar, que, aliás, agora até passou para uma tonalidade quase turva e cinzenta, devido à ameaça de chuva, é natural que já tenha voltado a aproximar-me da plataforma continental, onde também se situa a própria Ilha de Fernando Pó. Pois, desta ilha ao continente, ainda vão 30 km. Desconfio que aquela mancha, que de volta e meia vejo aparecer e a sumir-se no horizonte, sendo perfis de terra, deverá ser o Monte dos Camarões, que, se não estou em erro, tem mais de 4000 metros de altitude.

Mas, por agora, não posso fazer qualquer conjetura; estou a meio da manhã. Talvez lá para o fim da tarde o céu se descubra melhor. Agora é muito difícil. O tempo escureceu bastante. E não deve tardar a despenhar-se uma carga de água sobre mim.

Não sopra vento algum. Mas a atmosfera é um balão saturado de humidade. Quase não respiro ar mas água. O mar está brando e melancólico. Sinto-me triste vê-lo assim. Gostava de o ver  com outra cor e transparência. Com aquele azul escuro e límpido ou quase de um roxo aveludado, que é o mar das grandes profundidades ou então num azul mais claro, com a crista das ondas espumando e refletindo uma luz quase irreal,  quando o sol está a pino, ao meio-dia e os raios solares o atravessam, lá  do alto e bem aprumo.

Porém, para maior tristeza minha, até parece que já nem cor tem. É muito desagradável ver assim o céu tão espesso e carregado, o mar tão  feio e cinzento. Pois, à fome  que me devora, junta-se-me ainda uma maior angústia. E apreensão de que não  tardem por aí mais uns quantos trabalhos. Pois à chuvada à vista. 

E, de facto, com o refrescar do tempo, veio a chuva acompanhada de ventania e de fortíssimas bátegas. Com o tecto do céu escuro e carregado, nem era de esperar senão mais uma carga de água. A que me exponho sem hipótese de abrigo. De pouco me serve a capa que envergo. Cubro a cabeça com um plástico mas a chuva é demasiado forte. Cai em  grossas gotas sobre a mim e não cessa de martelar a minha canoa e à minha volta, num barulho que ameaça abafar até o próprio marulho das vagas, que se estendem por toda a vastidão, já totalmente mergulhada por uma  cortina  diluviana  e cinzenta.

Continuo a beber água das chuvas, misturada com água do mar. Não tenho anzóis para pescar. Mal me posso mexer, mas lá tenho que pegar no vertedouro para escoar a água que rapidamente se veio juntar à  salmoura já existente, que chocalha constantemente no fundo da canoa. Que não cessa de entrar pelas pequenas rachas e de se avolumar. Sinto-me fraco mas  também já nem sei até que ponto esta banheira ainda possa resistir. Se quem vai ceder primeiro, serei eu ou é a canoa que se vai abrir e voltar. Este tempo chuvoso, rouba-me as fracas energias que ainda vão dando  vida ao meu tão maltratado corpo. Estou enregelado, sinto-me entorpecido dos pés à cabeça, ensopado de água até aos ossos. A chuva não pára de cair e as horas arrastam-se lentas, ensopadas, penosas e desgastantes.

No entanto, mesmo desconhecendo a quantas ando, o dia segue o seu curso – Nada que se comparem às horas noturnas.  Mesmo decorrendo chuvosas e em gélida cadência, não têm a mesma cor das horas mortas de uma infinita  noite escura. Avançam alheias ao meu tormento, mas nem por isso se desligam do próprio compasso do tempo.  Um dia no mar, mesmo brumoso e chuvoso, nunca se pode comprar ao tumulto de um  mar agitado, rodopiando e tumultuando sob um céu espesso e cavernoso, imerso de solidão e liquefeito de  trevas.  Serão umas quantas da tarde, não sei. Já parou de chover mas estou todo partido. Não faço a menor ideia. 

Entretanto, o horizonte clareou, desfez-se da brumosa neblina em que se havia encoberto desde o meio da manhã e, embora cinzento, estende-se agora por um círculo, claramente mais amplo e afastado. O mar é agora um espelho lânguido, morno e calmo. Não se vêm os peixes em redor da canoa. Até parece que a vida se extinguiu. Ainda hoje não vi um raio de sol, contudo, paira em torno de mim uma estranha beleza e quietude. Tudo se confunde e dissipa num extenso manto de harmoniosa placidez e calmaria.

Excertos do diário gravado  - Falando do coco divinal que, dia antes, me matara a fome



Diário de Bordo 4 -Tive uma manhã brumosa!  Uma manhã sombria!... Uma manhã de chuva!... Tenho a nítida impressão que me aproximo de uma enorme baía!... Baía ladeada de altas montanhas!... Que ora estão escondidas ora ligeiramente descobertas!... Mas quase sempre escondidas...



Estou exausto!... Estou fraco!... As forças cada vez fraqueijam mais... A canoa está cheia de água!... O fundo está cheio de água, devido às constantes chuvadas que caíram esta manhã... Mas eu hei-de aproximar-me de terra... Eu sinto isso..

Constantemente torturado pelas minhas  angustias, sinto que física  e psicologicamente me encontro  noutro mundo. Não, não, este não é o mundo de quem vive com os pés assentes em terra. Flutuo continuamente à flor do abismo, dentro de uma urna muito frágil, que ora se ergue ora vai a cambalear, mas nem é isso que ocupa mais os meus pensamentos, pois já estou familiarizado, mas a fraqueza que me invade. No entanto, mesmo no limiar das minhas forças, se a minha canoa resistir, tenho a certeza que eu não vou desistir de lutar... Estou resignado  a suportar, com infinita paciência, todos os reveses e adversidades da minha triste sorte. Resignado, sim, mas não me vou render; o que eu não quero é  sofrer ainda mais. Só cruzo os braços quando me deito, quando me estendo no fundo da canoa e junto as mãos ao peito. Porque, eu sei, que, em cada alvorada,  há o renascer de um novo dia, de uma noite que se extingue e a luz  apaga,  uma nova promessa e uma renovada esperança..  

Parcas têm sido  as minhas palavras para o meu diário de bordo,  tal como no dia de ontem, porém, imensos os meus pensamentos, inarráveis os tormentos que assolam o meu coração

Diário de Bordo - 5 - Estou completamente exaurido!...Não sinto nada no estômago... É um saco de fole... Há uma fraqueza geral em mim...mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.... Eu sei que estas palavras que tenho pronunciado têm sido poucas... Tenho-me remetido num autêntico mutismo... Eu sei que estou isolado no mar!... Mas estou-me aproximar de terra!...

É para lá que me dirijo, suavemente…Pois pressinto  que as correntes me estão para lá a arrastar!... Vogando como um estranho  num mundo, que, apesar de sucessivamente mais perto, me parece, todavia, ainda perturbadoramente longínquo.
Um vazio contínuo  e causticante, arde-me e aperta-me  as paredes do estômago. Esforço-me por relaxar o corpo e apagar essa desagradável ardência, mas debalde, debalde! Não tenho outra coisa à mão  senão deixar-me absorver pelo meu sonho, o sonho de cheirar o perfume puro, inebriante da das florestas e beber água pura e cristalina de algum riacho  da montanha.

Mas, curiosamente, agora que estou com o estômago completamente vazio e encolhido, estou mais resignado. Sentia-me menos adaptado, quando tinha água e alimentos, até cheguei a chorar. Não de desespero mas por algo estranho a mim, misto de uma imensa tristeza a e abandono. Agora, não sei porquê, não choro, secaram-se-me  as lágrimas. Se Deus me levar, que seja essa a sua santa vontade. A sepultura  está sempre aberta ao meu lado.  Não vou dar trabalho  a ninguém.  Mas a fome  é  realmente um suplício  terrível! .E, então,  dormir de estômago vazio e encharcado, pior ainda!... Ainda se ao menos pudesse repousar!.... Bebo água e arroto, com um sabor desagradável vindo do estômago.  Costuma arrotar quem tem a barriga cheia, mas eu aqui arroto por ter a barriga vazia.  É o meu saco de fole  a implorar-me comida e eu não ter nada com que matar a fome. Ainda se ao menos conseguisse pescar alguma coisa. Fico debruçado sobre a borda da canoa, momentos infindos, tentando apanhá-los à mão, mas agora nem isso já consigo. Já não sou tão lesto.


Quem vai à praia sabe o apetite que traz de lá quando volta a casa. O mar desgasta muito. Enfim, cá  me vou acostumando a viver com a minha fraqueza e com a minha fome.. Estou mais resignado... Vou-me  entregando pacientemente  ao meu silêncio e à  minha solidão. Claro, que não me sinto vencido. Vou lutando com as minhas forças, conforme posso.  Vivo num estado em que é o sentimento da própria tristeza que me alimenta e  me conforma. Sim, sem desespero e sem blasfemar contra ninguém, alimento-me de marezia e de tristeza.  Se calhar até desgasta mais a alegria de que a resignação.  Naquela noite, em que os golfinhos me visitaram, eu estava mesmo muito abatido!".. E não me queria deitar... Receando que me desse alguma coisa de noite e não mais acordasse.    Será que vieram acordar-me e despertar-me para a vida?!...É bem possível..  E  a baleia?!... Não terá sido a mesma coisa?!....Vá lá malandro!... Acorda lá que já são horas de te levantares....E, de facto, há terra à vista. Resta saber se lá chego hoje e não sou afastado para longe, como já me tem ao acontecido.


A GARRAFA DO ÁLCOOL QUE ME MATANDO


Diário de Bordo 6 - Devem ser aí uma ou duas da tarde do 35º dia: está sol! O mar mais ou menos sereno! Há uma ligeira brisa mas ando à deriva por não haver vento suficiente para velejar...
Acabei agora de mitigar a fome com uma sopa  de peixe que tinha aí  e de barbatana de tubarão... Enfim... Caiu-me que nem um manjar!...
A propósito da sopa que fiz... ia-me saindo  cara!... Devido à garrafa  de álcool ter explodido!... O que me valeu é que a garrafa  já tinha pouco álcool, senão teria tido consequências drásticas!!
Assando uma ave
Foi realmente uma imprudência muito grande de minha parte, não haja dúvida: trouxe uma garrafa de álcool, que era precisamente para me servir dele  com a finalidade de chamuscar  algum peixito menos gostoso, que porventura apanhasse. Mas creio que somente cheguei a queimar  ou  outro e da seguinte maneira: verti-o para uma pequena lata onde eram imbuídos uns trapozinhos, ateando-lhe depois o fogo. No entanto, a maior porção ingeri-o à laia de coquetel com água do mar ou das chuvas nalgumas das noites mais frias e chuvosas, Porém, desta vez, com o álcool, quase no fundo da garrafa, cometi de facto uma incrível imprudência, cujas consequências poderiam ser graves e irreparáveis,  caso a garrafa não me tivesse fugido da mão em direção ao mar, por ação fulminante de um foguete, onde explodiu como um petardo. 

Diário de Bordo 7 - São aí quatro da tarde. O tempo mantém-se sereno... Pouco vento. Tenho andado à deriva visto o vento ser muito fraco.


Apanhei há bocadito  um peixe  à mão. Foi para mim uma festa!... Estou mais satisfeito agora.... Evidentemente que o comi, cruinho!... Mesmo quase vivo... Soube-me também!.. Ah! o meu estômago andava tão vazio!... Assim ficou melhor


Claro que, sendo pequeno,  não me matou a fome. No entanto, constato que, mesmo com coisa pouca me contento, que me faz realmente refletir que o ter ou não muita necessidade de comer é tudo uma questão de ordem psíquica: o fundamental, neste caso,  é viver um pouco acima das exigências de caráter psicológico: sim, de algum modo tenho conseguido no patamar dessa vivência, evitando, dentro do possível,  pensar em alimentos  ou comodidades   que não estão ao meu alcance, confinadas ao estreito espaço que habito. 
Julgo que, se não procedesse assim,  só iria agravar ainda mais o meu estado físico e mental, Só me inquietaria e mortificaria inutilmente: pois iria despertar no meu cérebro necessidades artificiais que de facto me seriam impossível de satisfazer.
Eis porque o meu pensamento predominante tem sido, simplesmente, porfiado no meu desejo imenso de apenas viver. Seja de que maneira  e em que condições forem: a palavra de ordem  é unicamente existir. Não tenho, portanto, vivido para comer, contrariamente às linhas que norteiam certos mortais. A minha existência tem sido praticamente contemplativa

Diário de Bordo 8 - Já se pós o sol do 35º dia!... Portanto, hoje já não chego lá... Aliás, agora, ao fim da tarde, tive um bocadinho de vento mas eu nem pus a vela, visto não poder chegar lã e então... estar de noite  muito preocupado com a chegada!... Assim, chego lá amanhã, com certeza....
Apanhei uma ave! Tenho, então, já uma pequena peça  de reserva para amanhã, caso enha a necessitar
Neste momento o mar mantém-se com uma certa calmaria!... Ligeiramente ondulado...O horizonte densamente nublado!... E há chuva para Norte... Na terra esytá a chover!... É provável que esta noite venha a ter, portanto, chuva...
Pelos vistos, hoje foi um dia em cheio!... Uma avezita, nada mal!... A coisa assim não está mal!... Esperemos que o fia de amanhã seja ainda melhor!

Geralmente, só adormeço de cansaço, quando a madrugada já vai entrada. Raro acontece antes da meia-noite. Por um lado, é o grande desconforto de ter o estômago vazio e o fundo da canoa ser duro e estar encharcado. Pois o colchão (de praia) há muito rebentou e de nada me serve, Por outro lado, são os muitos pensamentos, a imensa incerteza de que a canoa não resista. .É o que mais me preocupa.  E também  tenho muito receio  de ser abalroado - Sim, já vi alguns barcos no horizonte e já uma manhã um cargueiro passou muito próximo de mim - E eu agitar a minha capa, agitar e apitar  e ele a passar ao meu lado, como um monstro....É talvez ainda maior o desapontamento e a crueldade, que quando se mostra um rebuçado a uma criança e se lhe nega, ante os seus olhos ávidos e espantados.... É intraduzível a tristeza e a deceção que se apoderou de mim... Senti-me então a criatura mais abandonada  e triste deste mundo....E mais me convenci que só podia depender de mim, da minha força de vontade.
Além disso, de noite nunca sei para onde as correntes me arrastam..  E as correntes são quase como os ventos, nem sempre tomam o mesmo  sentido. Por vezes, até me parecem pequenos rios. São correntes dentro de outras correntes. Receio que me aproxime da costa e seja atirado contra a rebentação de algum penedo.. Tenho o sono dos gatos, à mínima coisa, acordo. Ainda não consegui dormir uma noite inteira. Ou porque chove ou porque, mesmo sem chover,  as constantes pancadas e balanços das vagas na canoa, atordoam-me, perturbam-me o descanso. O chape-chape deixa-me a cabeça num frangalho - É um  autêntico martírio! . Porém, a manhã já raiou, embora sombria e  com ameaça de trovoadas, por agora, cá vou indo,  levado, não sei para onde. 

Se olhar para a bússola, sei a direcção que a canoa toma, mas os ventos e as correntes fazem-na mudar constantemente.  . Tanto pode ser empurrada para norte, sul, leste ou oeste. Se não fosse isso, já tinha dado a qualquer ponto da costa.  Vou para onde me empurrar o vento e os caprichos das correntes. .Eu sou um zé ninguém e a minha canoa uma tábua flutuante...  Estou muito cansado de tanto olhar para o horizonte e para a bússola... Lá ponho a vela, quando o vento é favorável, mas com muito esforço... Ainda se tivesse um remo apropriado, mas o que improvisei, é demasiado tosco . Por isso, vou-me entregando à mercê de Deus...Aqui no mar sinto um grande apelo às minhas raízes cristãs. A fé é um bom suplemento de energias . E estou convencido que tenho um olhar divino a estender-me a sua bênção. Mas em terra eu não sou assim tão crente.

Também já tenho  avistado muitos golfinhos. Nadam em fila lado a lado, uns dos outros. Lá vão à sua vida, e eu continuo na minha. Uma noite resolveram brincar comigo. Fizeram do casco o seu arco. Como estava muito escuro, deixavam um rasto luminescente...Exprimiam uns grunhidos, muito estranhos, saindo do fundo das águas, como  foguetes da escuridão, deixando um rasto luminoso. Era cambalhota atrás de  cambalhota por sobre a canoa.  Até parecia um foguetório. . Receando que algum caísse dentro da canoa e ma partisse, dei umas apitadelas com o apito que trago sempre pendurado no pescoço e  desapareceram. Se calhar vieram-me acordar-me para a vida. , Foi numa daquelas noites muito tristes, em que me sentia muito fraco  e  deprimido. Mas agora já estou mais acostumado a viver com a minha fraqueza. Não tenho comido nada. Tenho estômago, mesmo duro e encolhido. Quanto arroto, parece que até me vem à boca, o gosto às minhas vísceras.  Vá lá que não me tem faltado água das chuvas. Houve uns dias em que não choveu e só bebi água do mar. .. Bebia de vez em quando  aos golinhos para não me fazer mal e também para não me desidratar. Não havia uma nuvem no céu e nem  uma aragem corria... Eram calmarias atrás de calmarias,,  Que tormento o meu!. Antes apanhar água das chuvas em cima do corpo, de que não chover e morrer de sede.

Numa tarde, era tanto, tanto  o calor que me queimava a garganta, quase me sinta  sufocado (sim, este é um mar equatorial, em que o sol sob a pino e os dias e as noites são sempre iguais) que lasquei um pedacinho da borda da canoa, que estava húmida e fiz uma espécie de chiclete. ... Meu Deus!... No mar a  fome é dolorosa, mas a sede é ainda  pior  - É uma tortura insuportável!  - E, todavia, tanta água à minha volta!...Que suplício!... Eu lá ia bebendo uns golitos de água salgada, mas ficava sempre com sede. Não é a mesma coisa que a das chuvas ou água potável. Serve para amenizar mas pouco mais dava que ir molhando os lábios e humedecendo a garganta.  . Mesmo assim, ás vezes lá ia fechando os olhos, tomando-lhe o gosto e bebendo um pouco mais.



Pensamento do dia EU E O MAR - José Luís Peixoto, escritor
Para José Luís Peixoto, a melhor forma para se tirar bom partido do mar consiste em "observá-lo, desfrutar dele, contemplá-lo e, se possível, escrever sobre ele".









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