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domingo, 10 de novembro de 2019

Odisseia no Golfo da Guiné 21º DIA – Pois não sei para que sítio me dirijo mas sinto que a canoa está a andar! É o que interessa fundamentalmente. “Sinceramente, já tenho pena de ter ferido aqueles tubarões azuis e martelos...Parecem-me simpáticos!....Alguns deitam um olhar, cá para cima, para a minha pessoa, parece com boas intenções... "

Algures no Golfo da Guiné, há 44 anos  - 10 de Novembro de 1975


Algumas das observações, que registei para o pequeno gravador, que preservei no interior de um ex-contentor do lixo, poderão parecer que se repetem. Não com as mesmas palavras, mas com as mesmas dúvidas e interrogações – Sim, a vida de um náufrago, é isso mesmo: o seu mundo está confinado à sua tábua de salvação e o mar é o palco de todas as suas horas e momentos – É à tona dele e ao Deus-dará que a sua vida vai somando todas as suas incertezas, esperanças  ou desilusões.

Diário de Bordo 1 -  Já amanheceu! É o 21º dia que viajo na canoa São Tomé (Yon Gato). Está uma manhã escura! Nuvens espessas, cinzentas, ameaçam chuva!...O mar tem uma cor cinzenta. 

Os tubarões continuam a escoltar-me aqui às dezenas! Dá-me a impressão que até são os mesmos: o martelo e o azul. Andam aqui às voltas da canoa de um lado para o outro.

De noite deixei de ver a Ilha de Fernando Pó, pois fiquei completamente na escuridão, mas agora volto novamente a vê-la. Dá-me a impressão que andei bastante!...Portanto, já não deve faltar muito para atingir a terra. Vou fazer tudo por tudo por lá chegar hoje.... Estou saturado disto. O tempo é muito mau nesta região. Só trovoadas! Só trovoadas! Pequenos períodos de bom tempo, mas depois trovoadas!...É saturante!...
TEMPESTADES TROPICAIS OU SÚBITAS CALMARIAS – É ASSIM O ALTO MAR DO “GRANDÍSSIMO” GOLFO DA GUINÉ


Diário de Bordo 2 – Devem ser aí umas nove e tal da manhã. A manhã surgiu brusca, nevoenta, o que fazia prever a iminência de uma trovoada. E finalmente surgiu! Acompanhada  de forte ribombar do trovão e relâmpagos!... Esta trovoada retardou a minha chegada para a costa de África, puxou-me para sul. Mas já estou a dirigir-me novamente para norte, devido à ação contrária das correntes.

VARIAVAM AS CORRENTES E TAMBÉM O HUMOR VARIAVA CONFORME O TEMPO

Diário de Bordo 3 – Pois ...estou porreiro, estou bem disposto!... Hoje de manhã fiquei chateado com aquela chuvada que apanhei em cheio!... O trovão ainda continua a ouvir-se, mas lá muito ao longe, muito afastado de mim!...

Os meus amigos tubarõeszitos, azul e martelo, continuam aqui a fazer-me escolta. Dá-me a impressão que  são meus amigos. Aliás, estou convencido de que, enquanto estiverem estes aqui, não vem cá os outros, os vorazes! que costumam dar aqui umas rabanadas!...Ainda bem que assim é!...

Pois cá estou a dirigir-me a toda a brida! Não sei para que sítio mas sinto que a canoa está a andar! É o que interessa fundamentalmente.

Já tomei qualquer coisa esta manhã: fiz umas farinhazitas e tomei um nescafé com água das chuvas, que também misturei com um bocadinho de  água do mar. Estou bem disposto neste momento.
SIM, HOUVE MOMENTOS DE MUITA ANGÚSTIA  E ABATIMENTO, EM QUE ERAM MAIS AS DÚVIDAS QUE AS CERTEZAS... ERA SOBRE-HUMANO NÃO VACILAR...

Diário de Bordo 4 – Eu, neste momento?!... Não sei...Sinto qualquer coisa!... Tanto me dá  vontade de rir!...como de chorar!... Não sei...Afinal de contas, o que é que eu sou?!... Ando para aqui a fazer o quê?!... Vinte e um dias passados!.... Não sei o que sinto já!... Porquê?!... Oh meu Deus! Não é medo, não é nada!... O quê?!...Não!... Ninguém pode vir aqui!!!.... Ninguém pode mexer-me na canoa!!... Aqui, quem manda sou eu!!...Ninguém pode violar-me isto!... Afinal eu sou gente, eu sou gente, eu sou gente ou sou o quê?!...

Diário de Bordo 5 – Ao fim de 21 dias passados, miro-me ao espelho. Vejo que a minha figura é diferente: barca crescida, rosto queimado, olhos encovados, cabelo em desalinho... Figura triste!... Louvado seja Deus!... Eu sou?!... Nem sei o que sou já... Talvez bicho do mato!...

MAS O MAR É MESMO ASSIM... AS SUAS MÚLTIPLAS FACES SÃO INDISSOCIÁVEIS DE QUEM VOGA À FLOR DAS SUAS ÁGUAS OU O MESMO O CONTEMPLA, COM OS PÉS FIRMES NA BERMA DE UMA PRAIA.

Diário de Bordo 6 – Serão aí umas quatro da tarde. A  tarde pôs-se boa. Velejei um bocado, mas sinto-me cansado!...Acabei por desistir, porque, entretanto,  começou a escassear o vento, o mar a ficar encrespado, e, com o remo improvisado, não consegui fazer melhor. Deixo o resto ao cuidado das correntes, que também me têm ajudado imenso; outras vezes, claro, contrariam, conforme as trovoadas...Enfim, vamos ver como é que se porta o resto da tarde e a noite, pois, hoje, já não devo lá chegar, com certeza.

BIOKO (EX-FERNANDO PÓ) A ILHA QUE QUERIA EVITAR MAS ONDE MAIS TARDE, ACABARIA POR IR PARAR 

Continuo a ver perfeitamente a Ilha de Fernando Pó. Aliás, só com a vela e mesmo sem o efeito do remo, acabava por ir diretamente para lá... Não estou interessado. Prefiro a costa de África, a Nigéria....Mas, para mim, a costa de África, ainda continua a ser um mistério porque eu não sei onde vou parar!... Posso chegar lá de noite, e isso pode constituir perigo... Portanto, tenho que ir com o máximo de cuidado, com o máximo de vigilância para evitar que a canoa vá contra qualquer coisa... Não sei... mas daqui lá, ainda é capaz de faltar um bocado...Não se vislumbra... É curioso!... Não se vislumbra nada ainda no horizonte... É uma costa baixa..

OS PEIXES, ESSES MEUS COMPANHEIROS DE TODAS AS HORAS.

Sinceramente, já tenho pena de ter ferido aqueles tubarões azuis e martelos...Parecem-me simpáticos!....

Diário de Bordo 7 – Fim de tarde do 21ª dia. Há bocadito disse que sentia pena de ter maltratado os tubarões martelo e azul. Realmente, tenho pena porque eles parecem inofensivos!... Alguns têm uma cabeça muito esquisita, mas têm uma cor muito bonita, e, de vez em quando, deitam um olhar, assim cá para cima, para a minha pessoa, parece com boas intenções...Dá-me a impressão que são inofensivos... Pelo menos estão-me a proteger daqueles vorazes, que são os castanhos, os escuros!... Esses, cada vez se aproximam da canoa, dão logo aqui umas rabanadas!... É curioso!... Realmente, mesmo na classe dos tubarões, nem todos são maus!... É um pormenor que registo com muita curiosidade... Tenho-os marcado a quase todos com o machim! E tenho pena porque eles acompanham a canoa... Quando deixo de velejar, dão uns saltos, umas piruetas, aqui próximo!... A princípio, a companhia deles meteu-me um certo medo, mas dá-me a impressão que não são maus!....

O mar apresenta-se de uma cor  azul clarinha. O céu tem onde em onde umas nuvens...Mas  tem bom aspecto. É um fim de tarde agradável!... Estou a ouvir rádio, a escutar música portuguesa da Emissora Nacional de Lisboa....Enfim, uma vezes estou chateado.... agora estou mais  bem disposto... Vamos lá a ver como a noite se vai portar...



É O MAR! É O MAR! E TAMBÉM  ASSIM O MAR DA  NOITE!... ONDE POR VEZES TUDO É LÚGUBRE E SE CONFUNDE NUM ÚNICO MANTO DE ABANDONO E SOLIDÃO ....MAS TAMBÉM HÁ NOITES DE LUAR ADMIRÁVEIS, QUE ESPELHAM O QUE DE MAIS BELO E SAGRADO, DEUS OFERECE AO SER HUMANO
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Diário de Bordo 8 – É noite. O mar está bastante cavado, com uma ondulação, pelo menos regular. Corre uma apreciável brisa mas não me atrevo sequer a pôr a vela... Neste momento, estou nitidamente na corrente. Sinto que ela está impulsionando a canoa... Por este andamento, estou convencido que manhã é que devo realmente chegar à costa de África...Nesta altura, não vejo ainda qualquer vestígio que me indique... Estou a fazer estas deduções em relação  à a Fernando Pó, porque  esta ilha fica muito próxima da costa africana, designadamente, quer da Nigéria, a Norte, quer dos Camarões a Leste.

O céu está com algumas nuvens escuras em certas partes do horizonte; outras, estão descobertas. Mas corre uma boa brisa, é natural que chova, lá para muito tarde... Faz-me uma companhia, aqui ao meu lado, uma ave, que, aliás, já é habitual.

Diário de Bordo 9 – Já jantei. Fiz umas papas e estou muito bem disposto.... Está luar!...Portanto, daqui a pouco vou cobrir a canoa com um pequeno oleado e deitar-me. Mas vou ficar atento, pois é perigoso, eu estar próximo da terra, a canoa bater num rochedo ou mesmo virar-se numa praia. Além disso, há os barcos que podem passar...

Confio na resistência da canoa. Ela continua a meter água; não mete tanta, como a princípio, antes de lhe arrancar a carlinga, pois os pregos tinham atingido o fundo.. Mas continua a meter alguma... Espero  que não parta e possa aguentar.

Sinceramente, estou bem-disposto e adaptado a esta solidão... Existe aqui uma ilha, algures, que agora não vejo. Parece que é uma coisa que não tem vida. Parece que a vida, para mim, só existe aqui na canoa... São os peixes que me acompanham, são as aves que eu vejo e o céu estrelado, e o luar... Enfim, este mar e céu que é a minha vida...


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